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Artigo de Jornal

Tese destaca ações da Anistia Internacional contra a tortura

Atuação da ONG na elaboração de tratado inaugurou nova etapa no ativismo transnacional, aponta estudo

Criada em 1961, a Anistia Internacional (AI) é uma entidade protagonista no combate às violações de direitos humanos no mundo. Além disso, a organização não governamental (ONG) também funciona como referência para outras organizações da sociedade civil que atuam com o mesmo propósito. Uma de suas ações políticas mais exitosas e que inaugurou uma nova etapa do ativismo transnacional, segundo a pesquisadora Carla Vreche, foi a campanha para a abolição da tortura, um dos fatores responsáveis pela criação, em 1984, da Convenção Contra a Tortura e Outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes, conhecida como Convenção das Nações Unidas contra a Tortura (Uncat, na sigla em inglês). A atuação da ONG nesse processo serviu de tema para a tese de Vreche, defendida recentemente no Programa de Pós-Graduação em Ciência Política do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Unicamp e orientada pelo professor Andrei Koerner.

A AI reúne cerca de 7 milhões de ativistas no mundo inteiro e produz campanhas, relatórios e mobilizações que muitas vezes reverberam nos posicionamentos e nas decisões dos mais diversos Estados. Em dezembro de 1972, em um período de reiteradas violações de direitos humanos por parte de ditaduras na América Latina e por parte de agentes envolvidos em conflitos bélicos em outros pontos do planeta, como a Guerra do Vietnã, a ONG lançou uma ação de grande repercussão internacional: sua campanha contra a tortura. Poucos meses antes, ela havia divulgado o “Relatório sobre as Acusações de Tortura no Brasil”, que elencou os nomes de 1.081 torturados e de 472 responsáveis pela prática de tortura no país.

“Percebo que a experiência do Brasil influenciou a atuação da AI em outros países, como no Chile, no Uruguai e na Argentina. A aproximação com as ditaduras na América Latina levou a entidade a elaborar um outro tipo de atuação, que são as mobilizações temáticas, e a primeira grande experiência é a campanha [de 1972 contra a tortura]”, observa a pesquisadora. “A experiência do Brasil ajuda a AI a entender e consolidar a ideia de que a tortura é um ato cometido pelos Estados. A situação no Chile também causou um grande impacto na ONU [Organização das Nações Unidas] quando as denúncias começaram a ser feitas.”

Com a Uncat, a tortura passou a ser considerada crime contra a humanidade. “Essa foi uma vitória em termos de negociação entre atores”, ressalta Vreche. O fato de a convenção ter adotado o princípio da jurisdição universal também é um dos pontos destacados por ela. “A jurisdição universal, que acredito ser o elemento mais interessante dessa convenção, traz a ideia de que não importa de que país seja a vítima ou o torturador ou onde tenha acontecido a tortura. Qualquer Estado pode reclamar o direito de julgar o torturador.”

Graduada em Relações Internacionais e mestra em Sociologia pela Universidade Federal da Grande Dourados (UFGD), a pesquisadora estuda a atuação da AI desde sua iniciação científica. O tema da tese, que contou com o apoio da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp), insere-se nas discussões sobre o regime internacional de direitos humanos, do qual organizações da sociedade civil participam ativamente. “No espaço da ONU a decisão final é dos Estados, mas essa decisão é influenciada durante todo o processo por atores não estatais”, observa.

A AI, por sua vez, desempenhou um papel de destaque no processo de aprofundamento dessas interações. “Desde o processo de criação da ONU, as entidades da sociedade civil reclamam um espaço de ação. Foram criados alguns mecanismos de interação, e o mais famoso deles é o status consultivo. Para obtê-lo, as organizações passam por um processo de validação da ONU e [ao conquistá-lo] ganham a possibilidade de participar de reuniões, apresentar documentos, fazer reuniões paralelas.”

Persistência da tortura

A Uncat completará quatro décadas em 2024 e se consolidou como um importante instrumento para coibir a tortura. “Em termos de política internacional, a convenção gera um tipo de constrangimento maior, em um embate direto com a soberania nacional. Os Estados estão sempre dizendo: ‘Se aconteceu no meu país, é problema meu’. Mas a Uncat diz que, quando se pratica um crime contra a humanidade, não se trata de um problema só seu. Esse passa a ser um problema da comunidade internacional”, aponta Vreche

Em períodos de ascensão do autoritarismo, reflete, espaços como a ONU se tornam ainda mais importantes. Em termos práticos, no entanto, ainda há muito a avançar. No Brasil, mesmo após o fim da ditadura, a tortura continua a ser uma prática institucionalizada no sistema prisional e na forma como atuam as forças de segurança pública, criticam Vreche e o seu orientador.

Para Koerner, essa situação infelizmente perdura sem “que se possa vislumbrar mudanças efetivas”. Na opinião do docente, a atuação deveria ter sido mais efetiva na promoção de mudanças na questão da segurança pública, no sistema prisional e nas práticas de agentes públicos para coibir a violência. “Foram tímidas as iniciativas governamentais nesse sentido. Hoje a situação não é melhor. Na verdade, é pior do que a que tínhamos há 30 anos. Há uma reprodução interna dessas práticas, que ocorrem de maneira oculta, mas que são compartilhadas por atores com interesses concretos nisso, atores que encontram apoio na nossa cultura”, analisa, dizendo que esse apoio torna-se manifesto, por exemplo, na eleição de membros da chamada bancada da bala, defensores confessos de práticas violentas.

“O bloqueio que existe por parte das autoridades, tanto na polícia como no Judiciário e no Executivo, é muito grande. Aquilo que era para ser vergonhoso, estarrecedor do ponto de vista das pessoas, é ostentado como algo a ser valorizado. Isso é paradoxal do ponto de vista de uma pessoa que tenha um senso de justiça e de humanidade razoável”, observa.

Para Koerner, o fortalecimento e a multiplicação de espaços, de grupos de pesquisa e de ativistas engajados na promoção e na defesa dos direitos humanos funcionam como contrapartida para essa situação, ainda que haja um bloqueio sobre o assunto por parte das autoridades, tanto na polícia como no Judiciário, no Executivo e no Legislativo. Vreche e seu orientador integram o Grupo de Pesquisa em Direitos Humanos, Democracia e Memória do Instituto de Estudos Avançados (IEA) da Universidade de São Paulo (USP), que promoveu recentemente, dentre outras atividades, um seminário acerca do desmonte das políticas de combate à tortura nos últimos anos, no Brasil.

Sobre as contribuições da tese, o orientador aponta que a pesquisa preenche lacunas acadêmicas referentes ao impacto de um ator que, normalmente, merece pouco destaque, ainda que estejamos em uma época de expansão da normatividade internacional interessada em conter as violações de direitos humanos.

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