“Eu nunca me imaginei dançando […] e fui uma das quatro bailarinas escolhidas para dançar nas paralimpíadas de Londres, em um estádio para 82 mil pessoas.” Com essas palavras, a bailarina Elza (nome fictício) relata como a dança foi capaz de transformar sua vida. A dançarina, que nasceu cega, começou a enxergar ainda na infância, mas voltou a perder a visão na adolescência. Na época, não tinha contato com outras pessoas cegas, mas, aos 18 anos, ouviu na TV sobre uma associação que ensinava dança clássica para pessoas com deficiência visual e resolveu participar. Hoje com 34 anos, Elza é casada, mãe e bailarina profissional e relata que tem no balé a oportunidade de mostrar todo o potencial das pessoas com deficiência.
Junto com outras cinco dançarinas cegas, Elza participou de uma pesquisa de mestrado que teve o objetivo de investigar o significado da dança para bailarinas profissionais com deficiência visual. Realizado na Faculdade de Educação Física (FEF) pela aluna Renata Maximo Guidetti Turcheti, sob orientação da professora Maria Luiza Tanure Alves, o trabalho constitui-se de um estudo de caso realizado a partir de entrevistas com as bailarinas da Companhia Balé de Cegos, da Associação Fernanda Bianchini, em São Paulo.
Os resultados da análise apontam a dança como um espaço com diferentes significados para mulheres com deficiência visual, entrelaçados com a subjetividade de suas histórias de vida, sua condição socioeconômica, seu corpo, sua idade e o próprio entendimento da sua deficiência. Com isso, pôde-se perceber que a dança questiona a compreensão tradicional da deficiência como uma tragédia pessoal e um fator incapacitante, permitindo o seu posicionamento como parte da identidade dessas mulheres, apesar da opressão social em torno dos corpos não normativos.
Esse tipo de pesquisa tem reflexos profundos na compreensão sobre a mulher com deficiência e suas necessidades porque, apenas ao entender a experiência de um determinado grupo social, é possível construir políticas que garantam seus direitos fundamentais. Para se ter uma ideia, em nenhum momento das entrevistas a deficiência visual apresentou-se como uma barreira para a prática de balé. Os conteúdos surgidos durante as conversas disseram respeito a questões como arte, o suporte, a relação entre intérprete e espectador, o espaço cênico, a maternidade, entre diversos outros temas.
“Mas, apesar dessas diferenças, o ponto em comum é o balé, porque ele foi a forma que as dançarinas encontraram para serem vistas e reconhecidas na sociedade”, comenta Alves. A docente, que coordena um grupo de estudos voltados à mulher com deficiência no Departamento de Estudos da Atividade Física Adaptada da FEF, afirma que as pesquisas sobre a mulher com deficiência no esporte ou em contextos de atividade física ainda são escassas no Brasil, o que torna esse tipo de trabalho ainda mais relevante.
Estudos sobre deficiência
O estudo de Turcheti se pautou no modelo social da deficiência, que compreende que as principais barreiras enfrentadas por essa população são impostas pela sociedade, para a qual, em regra, o corpo capaz equivale ao corpo normativo. Mais especificamente, a pesquisadora se baseou na área de estudos feministas da deficiência, campo formado majoritariamente por mulheres com deficiência ou mulheres que têm experiência como mães de pessoas com deficiência e que assumem, entre outras funções dentro da família, a de cuidadoras. Segundo essa perspectiva feminista, a deficiência se configura de diferentes formas para cada pessoa e se entrecruza com fatores como classe, gênero e raça. Sendo assim, o tema da acessibilidade em ações e políticas públicas é apenas um dos que devem ser considerados quando se trata da deficiência.
Isso acontece, por exemplo, porque muitas pessoas com deficiência continuarão necessitando de suporte mesmo se estiverem em um ambiente acessível, como é o caso daqueles que convivem com deficiências severas. Ainda assim, esses pacientes têm direito a sua autonomia, que passa por escolher quem será seu cuidador, quais tratamentos de saúde adotar ou o que gostariam de comer, entre outros fatores. “E, da mesma forma, os cuidadores dessas pessoas também devem ser levados em consideração, porque geralmente quem cuida é invisível para a sociedade”, comenta a docente.
Por esse motivo, um dos aspectos relevantes dos estudos feministas sobre a deficiência é a proposta de abandono da palavra “independência”, termo que, de acordo com essas pesquisadoras, se trataria de uma “ilusão”. Ao invés disso, propõe-se o emprego de termos como “interdependência”, uma vez que todas as pessoas, em algum momento da vida, dependeram ou irão depender de alguém. O conceito de interdependência questiona as políticas atuais de cuidado ao assumir esse cuidado como algo permanente em nossas vidas. “Então, nós trouxemos todas essas questões para o trabalho, tentando criar uma outra ótica sobre a deficiência, levando as pessoas a pensarem em políticas públicas e espaços adequados”, acrescenta Turcheti.
Visando tornar o estudo mais acessível, a pesquisadora entrou em contato com a Biblioteca Central Cesar Lattes da Unicamp, que possui o Laboratório de Acessibilidade (LAB), para providenciar a audiodescrição da dissertação e a produção do documento em TXT, formato de texto que permitirá a impressão do trabalho em braille. Atualmente, a autora está frequentando aulas como aluna especial no Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) e no Instituto de Artes (IA) da Unicamp, além de manter-se no grupo de estudos do Departamento de Estudos da Atividade Física Adaptada. Seu objetivo é dar prosseguimento às pesquisas com um doutorado a ser realizado na FEF.
Este texto foi originalmente publicado por Jornal da Unicamp.