A consolidação da inserção de empresas, companhias financeiras e, mais recentemente, Estados nacionais nas operações dos clubes profissionais de futebol dá conta do avançado processo de mercadorização de um esporte imprevisível, que se firmou como negócio bilionário por seu potencial para influenciar torcedores/consumidores fiéis e sua capacidade de atravessar fronteiras e mobilizar audiências apaixonadas. Para os fãs da essência imponderável dessa modalidade esportiva, a disseminação de modelos capitalistas (como clubes- -empresa e conglomerados futebolísticos) desperta desconfiança. Afinal, de que maneira pode uma marca transformar o futebol?
A questão norteou o sociólogo Vinicius Alvim em sua pesquisa de mestrado, realizada no Programa de Pós-Graduação em Sociologia do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Unicamp, e é explorada na dissertação “A Contrapartida do Futebol: A inserção do processo de branding da Red Bull no esporte”. Sob orientação de Michel Nicolau Netto, professor do mesmo instituto, o pesquisador partiu de uma coleta de dados extensiva para analisar elementos peculiares àquela operação, comparando-a à atuação do City Football Group, outro conglomerado de times. Para tanto, se ancorou em literaturas teóricas sobre futebol, mercadorização e cultura de consumo, aliadas ao estudo do projeto de branding – processo de construção constante de uma marca – da Red Bull, uma empresa austríaca.
O sociólogo define a mercadorização como resultado do desenvolvimento de uma cultura que privilegia o consumo como um de seus principais atos. Caracteriza-se, segundo ele, pela transformação de elementos da vida social em mercadoria, organizando dessa forma a sociedade. “Embora talvez nunca chegue a esse ponto, [o fenômeno] é muito presente no futebol.” Ao investigar a operação da Red Bull, Alvim notou que a modalidade esportiva servia de peça para uma estratégia de branding, sendo pautada por suas diretrizes.
Seu trabalho revela elementos de um discurso publicitário presentes em quatro alicerces estratégicos: aquisição de atletas; perfil de jogadores e treinadores contratados pelo conglomerado; média de idade de seus elencos ano a ano; e desenvolvimento de um estilo de jogo único. “Ao olhar para o que, de certo modo, era o lado concorrente do modelo adotado, foi possível encontrar diferenças relevantes e mostrar que [aquela operação] não correspondia à realidade dos outros times”, destaca Nicolau Netto. “Questões que envolvem a transformação dos clubes para atender aos objetivos de uma empresa – como quebra de identidade e tentativa de mercadorização da paixão – se mostraram inerentes”, completa o pesquisador.
Medo e tensões
São-paulino, Alvim decidiu investigar a operação de uma marca no futebol quando pesquisou a relação entre o Futbol Club Barcelona e a Catalunha, em seu trabalho de iniciação científica, orientado pelo mesmo professor. “Há uma noção simbólica sobre a adesão do Barcelona aos movimentos separatistas e sua relação identitária. Vinicius notou que existia uma certa tensão entre a Catalunha, enquanto identidade, e a marca Barcelona, que adquire uma dinâmica própria, de valorização e de capitalização, consumida transnacionalmente por quem é e por quem não é a favor da independência da região”, explica o docente.
Uma vez na pós-graduação, movido não apenas pelo interesse científico, o pesquisador resolveu trilhar o caminho contrário. “Morro de medo do meu time virar clube-empresa. Sou muito fã de futebol e defensor do modelo associativista. De certo modo, esse trabalho é uma forma de militar politicamente”, confessa. Já a escolha do objeto de estudo foi determinada pela robustez da atuação da Red Bull no futebol, que em 18 anos acumula ao menos 20 títulos em campeonatos profissionais. “O caso apresenta um exemplo heurístico, melhor do que qualquer outro, do processo que o Vinicius já vinha observando. Talvez a dimensão da operação da Red Bull não seja comparável a nenhuma outra no futebol”, sinaliza Nicolau Netto.
Alvim examinou as especificidades da operação nos quatro clubes da empresa – Red Bull Salzburg (Áustria), RB Leipzig (Alemanha), New York Red Bulls (EUA) e Red Bull Bragantino. Como uma “varredura ininterrupta”, captou dados em canais de comunicação oficial da marca, veículos de imprensa, Twitter e Instagram. Reuniu, dessa forma, informações divulgadas oficialmente e, também, encontradas em entrevistas, reportagens, artigos opinativos e postagens de jornalistas, influenciadores e perfis de torcedores. A intenção era “ficar a par do que sempre estava acontecendo e não perder de vista, por exemplo, o tipo de contratação feita, a divulgação nos canais da marca e a repercussão nos portais e redes”.
Paralelamente, o sociólogo levantou dados de outras iniciativas que fugiam ao formato tradicional praticado no esporte. A atuação transnacional do City Football Group apresentou o maior número de similaridades em relação à operação pesquisada, sendo eleita para a análise comparativa – dos 13 times do grupo inglês, Alvim considerou quatro. A análise revelou disparidades consideráveis em todos os quesitos, destacando-se a baixa média de idade dos elencos da Red Bull, em comparação às médias de seu principal concorrente e também dos times que disputavam a Série A do Campeonato Brasileiro.
Segundo Alvim, essa preferência visava fazer da operação no esporte uma vitrine para o slogan: “Dar asas a pessoas e ideias”. “Há um discurso simbólico muito afinado, sendo construído em torno de uma marca supostamente arrojada, corajosa, que se aventura.” Para além de simbolizar força e velocidade, jogadores mais jovens costumam ser moldados mais facilmente a um discurso e um modelo de jogo específicos, justifica o docente. “Um craque é visto como concorrência [à marca]. Eles querem sempre ver estampados nas manchetes a vitória de seus times e não quantos gols uma estrela fez.”
O perfil dos treinadores revelado pela pesquisa combina juventude, trajetória vitoriosa em clubes pequenos e experiência profissional em outros setores profissionais. “Há uma tentativa em vinculá-los à marca de um produto que era pouco conhecido e que se construiu de forma particular, envolvendo-se com esportes radicais. Por isso não fazem questão de alguém que tenha muitos anos de experiência e sim que pareça ser arrojado e criativo”, analisa. As diferenças em relação ao grupo City foram igualmente notáveis na estratégia de contratação e no estilo de jogo. Ao contrapor as dez aquisições mais caras dos dois lados, o sociólogo constatou que o décimo jogador do grupo City havia custado o valor da maior aquisição da marca austríaca no futebol. “Cinco jogadores da Red Bull são necessários para chegar ao que o concorrente paga em um.”
Fruto dessa estratégia, o estilo tático de jogo adotado pelos clubes do conglomerado Red Bull foi sendo moldado ao longo dos anos para personificar a mensagem que a empresa buscava transmitir. “Independentemente do adversário, seus times jogam sempre com ousadia, para frente, marcando pressão e tentando recuperar a bola rapidamente. Os jogadores precisam se adaptar ao esquema da operação e se desenvolver nele”, finaliza.
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