Para estudantes com deficiência visual, acompanhar as aulas práticas dos cursos de engenharia e robótica significa um duplo desafio. Em universidades e escolas, a falta de acessibilidade nos laboratórios e a carência de equipamentos que atendam às suas necessidades impedem a realização de tarefas simples, além de pôr a segurança desses discentes em risco. A fim de que as pessoas cegas ou com baixa visão possam montar circuitos elétricos de forma segura, fazer a leitura de medidas e até mesmo desenvolver projetos automatizados usando lógica de programação, o engenheiro eletricista Giordano Arantes criou um dispositivo de baixo custo, em uma pesquisa de doutorado realizada na Faculdade de Engenharia Elétrica e de Computação (Feec) da Unicamp. Denominado Protótipo Assistivo, o aparelho possui sensibilidade tátil e recursos sonoros e pode ser conectado a um aplicativo de celular.
Pioneiro no desenvolvimento de tecnologias assistivas para pessoas com deficiência visual, o professor da Feec Luiz César Martini, que perdeu a visão em 1995, orientou o doutorado. Arantes ressalta que o docente desempenhou um papel fundamental, também, como principal testador dos seus dispositivos, ao longo do trabalho. “Giordano criou algo inédito no Brasil e, pelo que conheço, no mundo. Em comparação, eu diria que o Braille, indispensável na vida de um cego, seria uma bicicleta; e o protótipo que ele construiu, um avião a hélice. Com a bicicleta, conseguimos nos movimentar bem por terra, mas, para atravessar um oceano e ir mais longe, é preciso usar outro veículo”, avalia o orientador. “Antes, uma pessoa cega não tinha como fazer seu próprio circuito elétrico sem correr o risco de se queimar, por exemplo, porque é usada uma placa de metal, na qual é preciso soldar as peças.”
Arantes cita a obrigatoriedade das cotas para pessoas com necessidades especiais nas universidades e escolas federais, instituída em 2017 no Brasil, e a popularização das aulas de robótica nos ensinos fundamental, médio e técnico como algumas das principais motivações para seu trabalho. “A Unicamp anunciou recentemente que também terá cotas para pessoas com deficiência.” Como o foco era atender às necessidades dos cegos, o agora doutor em engenharia realizou uma pesquisa bibliográfica envolvendo leituras teóricas sobre tecnologia assistiva e ensino, a legislação voltada para a inclusão de pessoas com deficiência e as diretrizes e os referenciais para a educação de pessoas cegas ou com baixa visão. Suas peças exploram o tato e a audição como elementos de aprendizado.
O protótipo assistivo possui três partes, que funcionam de maneira independente. Com custo total de R$ 500, o aparelho já despertou o interesse da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Apesar do foco nos estudantes, a invenção se destina a toda pessoa com deficiência visual. Para desenvolvê-lo, Arantes tomou por base dois dispositivos obrigatórios nas engenharias, na programação e na robótica: a protoboard – placa de ensaio que permite a montagem temporária de circuitos eletrônicos sem a necessidade de solda, um dispositivo utilizado para testar conexões e componentes em projetos de eletrônica – e o multímetro – um aparelho que faz a leitura de medidas como tensão e corrente. Todas as peças foram desenhadas e produzidas pelo pesquisador, que utilizou uma impressora 3D.
O orientador pondera que, apesar da crescente atenção dos governantes para a urgência da inclusão de pessoas com deficiência nas escolas, nas universidades e em outras esferas da sociedade, faz-se necessário ampliar os investimentos em pesquisa assistiva no país. “O trabalho do Giordano é pioneiro no mundo. Ainda assim, é preciso fazer muito mais. Não há campo de trabalho para engenheiros assistivos no Brasil. Para dar continuidade a esse estudo, é preciso apoio.”
O protótipo assistivo
Nos laboratórios, oficinas e fábricas, a protoboard serve a diversos fins. Na sua superfície, são afixados resistores, sensores e interruptores, entre outros componentes, para fazer sistemas variados. Essas peças devem ser encaixadas em pontos de contato específicos, então ligados em série ou em paralelo por meio de trilhas condutoras integradas, localizadas na parte inferior da placa. Segundo o professor, executar todo esse processo representa uma dificuldade para quem não enxerga, pois não há sinalização tátil indicando onde cada peça deve estar.
A importância e a versatilidade da protoboard, aliada à falta de opções no mercado que atendam às necessidades de pessoas cegas ou com baixa visão, pesou para a decisão do pesquisador de desenvolver uma versão acessível da placa. Arantes escolheu o plástico como material de fabricação por esse produto permitir um uso seguro.
Seguindo as diretrizes teóricas, a legislação e a orientação de Martini, o pesquisador fez uma placa seccionada em blocos. No seu interior, há uma rede de fios, conectados eletricamente. Como toda protoboard, na superfície, há pontos onde devem ser colocados os sensores, interruptores e outros componentes. Em toda a parte superior da plataforma, barreiras de plástico dispostas em linhas verticais e horizontais servem para a orientação espacial, por meio do tato. Assim, a pessoa pode manipular, pôr e tirar peças, mudá-las de lugar e experimentar diferentes elementos e combinações.
No seu projeto, Arantes desenvolveu duas protoboards. Para que as pessoas com deficiência visual possam montar aparelhos automatizados utilizando o protótipo assistivo, o engenheiro eletricista equipou uma das duas com um microcontrolador e criou o Progvox, um aplicativo de celular com comandos de programação já prontos para serem selecionados. A fim de criar o aplicativo, o pesquisador baseou-se no sistema assistivo Dosvox, desenvolvido especialmente para pessoas com deficiência visual na UFRJ, e na função talkback dos celulares Android. O Progvox já está disponível para download, gratuitamente.
Assim surgiu a Protoboard para Sensores e Componentes Eletrônicos. “Essa plataforma se conecta via bluetooth com o aplicativo, que traz opções para a pessoa decidir o que deseja fazer e, então, trabalhar com a programação sem precisar digitar cada linha de código, pois basta usar apenas a lógica de programação”, diz o pesquisador. As opções de comando são transmitidas por áudio desde o celular e, para selecionar as funções desejadas, usa-se um teclado de computador. Arantes incluiu três tipos de sensores na peça, a fim de que o usuário possa criar diferentes projetos. “Dá para montar, por exemplo, um alarme automático, uma luminária que acende quando o ambiente escurece ou então programar a rega de uma planta”, explica o engenheiro eletricista.
O multímetro falante completa o protótipo assistivo criado por Arantes. Igualmente essencial na engenharia e na robótica, dentro e fora dos laboratórios, o aparelho portátil serve para obter, em um circuito, a leitura de medidas como tensão contínua ou alternada, resistência e corrente elétrica. Os modelos encontrados no mercado possuem uma chave, a fim de o usuário escolher o que deseja medir, além de um visor, no qual aparece o resultado da leitura. Caso não consiga saber qual opção de medida está selecionando ou visualizar o valor exibido na sua tela, explica Martini, o usuário não terá como determinar o que está mensurando ou o valor da medição.
Com o objetivo de criar um multímetro assistivo para cegos e pessoas com baixa visão, Arantes adicionou funcionalidades tátil e auditiva ao equipamento, que possui botões nos quais é possível selecionar as opções de medida – escritas em Braille. Ao apertar cada botão, o usuário consegue saber o que está selecionando e confirmar o tipo de medição desejada. Após a realização da leitura, uma mensagem de áudio informa o resultado. Em vez de utilizar um microcomputador, o pesquisador, para baratear o custo do projeto, embutiu no multímetro um microcontrolador e sensores. Seu trabalho ainda envolveu uma etapa de programação e a criação de uma biblioteca com cerca de 250 arquivos de áudio.