Em sua pesquisa de doutorado, a professora de física Gabriela Pivaro realizou um trabalho de etnografia virtual para analisar a propagação do negacionismo de cunho pseudocientífico na plataforma então conhecida como Twitter. Para tanto, acompanhou, entre dezembro de 2020 e agosto de 2021, perfis alinhados ao bolsonarismo – incluindo as contas oficiais de Jair, Flávio, Carlos e Eduardo Bolsonaro. Seu estudo revela a complexidade envolvida na construção do discurso negacionista de cunho pseudocientífico nesse espaço e aponta o papel desempenhado pela própria rede social na propagação de mensagens negacionistas dessa natureza. Apresenta, por fim, estratégias para combater a desinformação nas escolas.
A partir de seu trabalho, Pivaro concluiu que o negacionismo encontrado na comunidade bolsonarista no Twitter resulta de uma série de fatores – decorrentes de um desconhecimento sobre o conceito de ciência e de uma percepção equivocada sobre como se dá a produção científica – e reflete um sentimento de descrença na mídia e na ciência. É, ainda, influenciado por uma ideologia política e potencializado pelo que a pesquisadora nomeou como a “e-femeridade das redes sociais”.
Etnografia virtual
O trabalho foi orientado por Gildo Girotto Júnior, professor do Instituto de Química (IQ) da Unicamp, e desenvolvido no Programa de Pós-Graduação Multiunidades em Ensino de Ciências e Matemática (Pecim). Realizado em um período marcado pela divulgação massiva de desinformação nas redes sociais, o estudo coincidiu com os meses mais letais da pandemia de coronavírus. Na época, lembra Pivaro, Bolsonaro e seus três filhos mais velhos utilizavam o Twitter como plataforma para questionar a eficácia do uso de máscara e da vacina, criticar o lockdown e defender o uso de ivermectina e hidroxicloroquina no tratamento de doentes. “Esse não era um comportamento exclusivo do bolsonarismo, mas, como a comunidade bolsonarista estava propagando desinformação, eu sabia que encontraria ali características do que estava buscando”, diz a doutora em ensino de ciências e matemática.
Pivaro utilizou um perfil exclusivo para a pesquisa e adotou uma técnica conhecida como snowballing: com exceção de Jair Bolsonaro e os três filhos mais velhos, seguiu apenas perfis recomendados pelo algoritmo do Twitter e os que apareceram em sua tela de forma recorrente, após analisar sua pertinência. Por oito meses, acessou a rede social ao menos quatro vezes por semana. Ao final, seguia 150 perfis – a maioria de políticos e influenciadores digitais. Os detalhes de seus tuítes, comentários e compartilhamentos foram registrados em um diário de campo de 322 páginas.
Ao interpretar esses conteúdos, a física detectou uma série de padrões comportamentais que mostraram um desconhecimento sobre a natureza da ciência. É o caso da “hiperparticularização”, a tendência de buscar explicações particularizadas para cada fato. “A aprendizagem ocorre quando se olha para um fenômeno e, após procurar por outros semelhantes no mundo, é possível generalizar e criar uma ideia abstrata capaz de explicá-lo. Na comunidade [de pessoas seguidas por ela], isso quase não acontecia. Apesar da preocupação em encontrar fontes para embasar o que estavam dizendo, eles buscavam sempre pela resposta que fosse ao encontro do que queriam.”
Como consequência desse comportamento, Pivaro notou uma tendência em descontextualizar os fatos, o que resultava na construção de argumentos contraditórios. Segundo a física, por não entenderem que a ciência decorre do trabalho de grupos de pesquisadores que conversam entre si e analisam processos e resultados continuamente, os usuários seguidos refutavam artigos científicos validados, considerando-se aptos para, sozinhos, decretarem o que é ou não ciência.
A construção dos argumentos negacionistas de cunho pseudocientífico costumava vir acompanhada de uma agenda ideológica, o que a pesquisadora encontrou tanto na tentativa de se chegar a uma ciência neutra como na elaboração de conspirações para desacreditar vozes críticas ao governo. “O conhecimento científico era desconsiderado. O lockdown, por exemplo, não tinha como objetivo isolar as pessoas para impedir a propagação do vírus, mas fazer o governo parecer incapaz de conduzir a economia do país”, exemplifica.
E-femeridades
Durante seu mergulho virtual, Pivaro constatou que as informações, entre a comunidade de pessoas seguidas por ela, só faziam sentido para os usuários dentro de um espaço-tempo limitado, perdendo a importância e o significado logo depois que desapareciam da tela. Apesar de ser possível procurar e recuperar algo publicado no passado, os usuários faziam a escolha consciente de não resgatar o que já havia ocorrido e ignoravam o que não fazia mais sentido. “No início da pandemia, Bolsonaro e sua família se posicionaram contra a vacinação, afirmando que nunca se vacinariam. Meses depois, postaram fotos e vídeos se vacinando. Seria de se esperar que seus seguidores ficassem horrorizados, mas não. Aquilo já tinha se perdido. O que importa é o agora, o trending topic do momento”, analisa.
Sua pesquisa revela que, embora não sejam o único espaço de disseminação de desinformação, as redes sociais se tornaram terreno favorável para sua difusão. Projetadas para capturar a atenção dos usuários pelo maior tempo possível (o que garante seus lucros), essas redes utilizam dados de navegação que permitem proporcionar experiências personalizadas, criando “bolhas ideológicas” nas quais só há espaço para o que reverbera. “A troca, o contato com o diferente é o que nos permite aprender e desenvolver uma postura crítica. Ao não mostrar conteúdos que produzam esse efeito, não há discordância, e um mesmo significado acaba sendo reproduzido cada vez mais naquela comunidade”, explica Girotto Júnior.
Esse ambiente potencializa, segundo a professora de física, o viés de confirmação – comportamento em que a pessoa tende a buscar por argumentos ou opiniões que corroborem suas hipóteses ou crenças prévias. “Por exemplo, ao ver no Twitter que o tratamento precoce funcionou em vários casos de covid-19, a impressão que a pessoa tem é que todos estão usando. Se todo mundo diz que é a cura, só pode ser verdade. Isso é impactante, pois reforça a sensação do sujeito de não estar sozinho na sua crença.”
A partir desse mapeamento, a pesquisadora defende que o combate à desinformação nas escolas passe obrigatoriamente por dois letramentos, o científico e o midiático. “A falta de compreensão sobre a natureza da ciência potencializa os comportamentos que encontrei na comunidade. Já o conhecimento sobre o funcionamento das redes sociais nos permite entender que os conteúdos exibidos são filtrados e, portanto, nem sempre correspondem à verdade”, conclui Pivaro.
Este texto foi originalmente publicado por Jornal da Unicamp.