A elaboração de planos diretores foi essencial para iniciar ou reforçar políticas de regulação do uso e ocupação do solo nas cidades de pequeno porte populacional do país, mas a legislação de ordenamento territorial ainda precisa ser mais bem regulamentada para atender adequadamente esses municípios. Essa foi a principal conclusão da arquiteta Selena Duarte Lage e Lage em sua tese de doutorado, defendida na Faculdade de Engenharia Civil, Arquitetura e Urbanismo (FECFAU) da Unicamp. A pesquisa, vencedora do prêmio Tese Destaque Unicamp 2022, concedido pela Pró-Reitoria de Pós-Graduação da Universidade, constatou que os territórios rurais desses municípios são os mais afetados pela falta de clareza no marco regulatório.
Planos diretores são leis de ordenamento territorial que definem as diretrizes para o planejamento de municípios pelo viés do desenvolvimento sustentável. Elaborados com a participação da sociedade, estão previstos desde a Constituição de 1988 para todos os municípios com mais de 20 mil habitantes e eram, originalmente, focados apenas em áreas urbanas. Em 2001, o governo federal sancionou a Lei do Estatuto da Cidade, que ampliou a abrangência dos planos para todo o território municipal e passou a exigir que municípios com menos de 20 mil habitantes criassem seus ordenamentos quando enquadrados em algumas situações específicas.
O problema é que, apesar da exigência legal, o marco regulatório federal oferece um aparato insuficiente para direcionar a formulação de bons planos diretores em pequenos municípios. O Estatuto da Cidade, que tem origem em movimentos sociais da década de 1960, responde aos anseios das populações das grandes cidades, que, diante do aumento expressivo dos problemas urbanos, mobilizaram-se para exigir acesso à terra e melhorias de infraestrutura. Por outro lado, a maior parte dos municípios brasileiros são classificados pelo Instituto Brasileirode Geografia e Estatística (IBGE) como rurais e, embora o Estatuto afirme que planos diretores devam olhar também para as áreas rurais, há uma lacuna relacionada à forma como isso deve ser feito.
De acordo com Lage, grande parte dessa lacuna se deve à falta de articulação entre as diferentes políticas públicas. Enquanto a Constituição Federal exige que a política urbana esteja vinculada à esfera municipal, a política rural está muito relacionada a instâncias estaduais e federais, como o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), o que dificulta aos municípios rurais pensarem o seu planejamento. “É difícil para as prefeituras aplicarem esses instrumentos porque eles demandam uma estrutura administrativa mais forte e organizada. Seriam necessários mais recursos humanos, técnicos e financeiros para que as prefeituras tivessem essas condições”, afirma a pesquisadora.
Esse cenário fica ainda mais complexo devido ao processo de dissolução da dicotomia urbano-rural, que vem ocorrendo desde o final do século passado, e com o aumento da demanda por infraestrutura e serviços urbanos nos territórios rurais. “Nessas áreas, há a presença de condomínios residenciais, loteamentos de chácaras de recreio, complexos turísticos e outras ocupações que exigem das administrações municipais uma infraestrutura urbana de coleta de lixo e esgoto, abastecimento de água, serviços ligados à saúde e à educação. Mas fica difícil para as prefeituras proverem tudo isso no seu extenso território sem uma regra clara sobre o uso e ocupação desse solo”, explica a autora do estudo.
A pesquisa
Para chegar a essa conclusão, Lage realizou uma ampla caracterização dos 3.914 municípios com menos de 20 mil habitantes do país por meio de dados bibliográficos e documentais. Em uma segunda etapa da pesquisa, ela realizou estudos de caso em seis pequenos municípios localizados nas cinco regiões do Brasil que elaboraram planos diretores após a instituição do Estatuto da Cidade.
A autora comenta que o interesse pelo tema da pesquisa surgiu de sua prática profissional. Entre 2011 e 2013, ela coordenou a elaboração de planos diretores em municípios impactados pela transposição do Rio São Francisco, na região Nordeste, onde cerca de metade da população vive em territórios rurais. Na ocasião, a pesquisadora percebeu que o Estatuto apresenta falhas. “Na tese, os municípios pequenos que compõem aglomerações urbanas e regiões metropolitanas não são o foco, porque eles já estão muito integrados em uma dinâmica urbana das grandes cidades. A ideia era investigar justamente os municípios que, por muito tempo, foram excluídos da política urbana”, revela.
Para o professor Sidney Piochi Bernardini, orientador de Lage, a pesquisa resultou em uma tese bem escrita e comprocedimentos metodológicos muito bem delineados, cuja grande qualidade é a originalidade de olhar para os planos diretores a partir da perspectiva das várias políticas territoriais. “Uma coisa é olhar os planos de forma pura, fora do contexto em que eles estão inseridos, como se fossem instrumentos exclusivos do poder público municipal e sem necessidade de se articularem com outras políticas. Contudo, o que ela faz é buscar esses elos, mostrar como a falta de articulações impacta os planos diretores, ao mesmo tempo que demonstra que eles tiveram, sim, alguns efeitos positivos”, explica.
Por esse motivo, uma das propostas do trabalho é que haja um rearranjo institucional federativo para promover a articulação entre diferentes políticas. Enquanto isso não acontece, os aprendizados proporcionados pela tese já renderam alguns frutos. Há cerca de um ano, os pesquisadores estão desenvolvendo um projeto de extensão na prefeitura de Gonçalves, em Minas Gerais, para a redação do seu novo Plano Diretor. “Esse é um projeto que se aproveita dos aprendizados proporcionados pela tese da Selena Lage e que também se desdobra em projetos de pesquisa e extensão na graduação. Então, Gonçalves aparece como uma oportunidade para estabelecer uma sinergia entre os três pilares da universidade, o ensino, a pesquisa e a extensão”, finaliza o professor.
Texto publicado originalmente no Jornal da Unicamp.