Um sorriso pode revelar muito mais sobre uma pessoa do que apenas seu estado emocional. Não é possível visualizá-las a olho nu, mas as bandas de Hunter-Schreger (HSB, na sigla em inglês), microestruturas presentes na camada mais externa de nossos dentes (o esmalte), formam linhas comparáveis às de uma impressão digital. Por meio do doutorado do pesquisador Giovani Fogalli, a odontologia deu um passo importante para tornar mais simples e acessível o uso das HSB como instrumento de identificação.
Em 2006, uma pesquisa de mestrado realizada na Unicamp por Liza Lima Ramenzoni comprovou que cada dente possui um padrão diferente e único dessas bandas, possibilitando seu uso para a identificação humana. Em seu doutorado concluído recentemente na Faculdade de Odontologia de Piracicaba (FOP) da Universidade, Fogalli desenvolveu o software Toothprint. O sistema aprimora a captura e o processamento digital das imagens dos dentes, armazenando-as em um banco de dados e possibilitando a comparação entre elas e a consequente identificação do sujeito envolvido. O projeto contou com a orientação do professor Sérgio Peres Line.
Ao longo de sua carreira, Line sempre trabalhou com o esmalte dentário, um tecido altamente calcificado e resistente, o mais duro do organismo. Nos anos 2000, o docente participou de uma pesquisa, conduzida em colaboração com a Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), para analisar a microestrutura do esmalte de dentes de mamíferos que viveram há cerca de 60 milhões de anos em Itaboraí, na Região Metropolitana do Rio de Janeiro. “Esses eram espécimes muito preciosos. Não podíamos danificá-los. Uma estratégia foi realizar essa identificação por meio da incidência de luz no esmalte do dente”, recorda o orientador, explicando que as HSB não estão presentes apenas nos seres humanos, mas em quase todos os mamíferos. “Por ser uma estrutura altamente mineralizada, o esmalte é preservado ao longo do tempo, podendo servir para estudos e análises como a identificação humana.”
A existência das bandas no esmalte dos dentes explica-se como um recurso evolutivo dos animais para aumentar a resistência dessas estruturas. As HSB nascem a partir da deposição, em diferentes camadas, dos cristalitos que compõem o esmalte, gerando um efeito óptico que pode ser captado por meio da incidência de luz lateral. A observação desses padrões em animais despertou o interesse em estudá-los nos seres humanos. A descoberta de Ramenzoni em 2006, à época orientanda de Line, representou um importante avanço. A pesquisadora analisou 272 dentes armazenados em um banco de dados por meio de um software para identificar impressões digitais, comprovando que os padrões das HSB eram únicos.
Entretanto as limitações tecnológicas do período, principalmente em relação à obtenção das imagens, fizeram com que esses estudos fossem suspensos. Por isso, Fogalli sugeriu inicialmente criar um software que aprimorasse a captura dessas imagens, etapa mais crítica de todo o processo, de acordo com os pesquisadores. No transcorrer do seu doutorado, no entanto, revelou-se possível desenvolver um sistema que também processasse as imagens, extraindo delas informações digitais, armazenando-as em um banco de dados e comparando-as umas com as outras. “Visualmente, nós temos uma certa capacidade de olhar duas imagens [de HSB] e buscar por similaridades. Porém, quando automatizamos esse processo, a fim de que ele seja mais confiável, precisamos criar algoritmos específicos”, explica o pesquisador, que realizou um estágio de pesquisa no Zuse Institut Berlin, na Alemanha, para desenvolver parte do software, que incorpora recursos de inteligência artificial encarregados de localizar as bandas nos dentes. Segundo o pesquisador, as HSB visíveis ocupam cerca de dois terços do esmalte dos dentes e, por isso, sua detecção deve ser feita de forma cuidadosa. “Dentro de todo o processo, a área do dente que será usada para análise é mapeada por IA [inteligência artificial].”
Antes de inserir uma foto no banco, o sistema identifica as HSB e recorta a área de interesse. A imagem recebe um filtro e passa, de colorida, a preto e branco, evidenciando as linhas das bandas. Esse processo permite a identificação de aspectos morfológicos das linhas, que são convertidos em dados numéricos e, posteriormente, armazenados. Após o seu desenvolvimento, o software foi validado por meio de testes feitos com 115 dentes naturais, em diversas condições – íntegros, fraturados, com cáries, restaurados etc. As imagens compuseram um banco de dados experimental e, para testá-lo, os pesquisadores compararam novas imagens com as existentes no banco. A taxa de erro registrada foi de apenas 6%, o que é promissor para identificação de uma pessoa, considerando o número de dentes em cada indivíduo.
Inovador e acessível
O desenvolvimento desse software representa um passo importante para a viabilização e ampliação do uso das HSB na identificação de pessoas, tal como se utilizam as impressões digitais. Além disso, porque o esmalte do dente é extremamente resistente à passagem do tempo e a condições adversas, como altas temperaturas e processos de decomposição, as bandas podem ser úteis em análises forenses envolvendo o reconhecimento de corpos de vítimas de grandes desastres ou em casos de decomposição avançada. “A análise das bandas fornece um resultado rápido e confiável e não demanda um dentista especialista que analise toda uma arcada dentária”, aponta Fogalli.
O sistema Toothprint continua a ser aperfeiçoado pelo pesquisador, agora pós-doutorando na FOP. Fogalli quer incluir nas análises outras características dos dentes, como trincas do esmalte e o formato dessas estruturas. O pesquisador possui ainda outros projetos, como o de ampliar o uso do software para, em vez de simplesmente analisar as fotos, fazer o escaneamento dos dentes em tempo real, mapeando áreas maiores do esmalte. Visa-se assim ampliar o uso do software de forma que o recurso se torne simples e acessível e que mais pessoas queiram ter o registro de suas HSB. “Quem sabe, um dia, as pessoas venham a guardar em suas casas as imagens de suas bandas para uma eventual comprovação de identidade?”, indaga Line.