Criar um projeto nacional para a educação serviu de ponto de convergência de um grupo de intelectuais brasileiros recrutados pelo Estado entre 1956 e 1964, período que antecedeu o golpe militar. O cenário político, portanto, não era tranquilo quando foram criados o Centro Brasileiro de Pesquisas Educacionais (CBPE) e os Centros Regionais de Pesquisas Educacionais (CRPEs), dos quais participaram expoentes da intelectualidade brasileira como Darcy Ribeiro, Gilberto Freyre, Florestan Fernandes, Carlos Drummond de Andrade, Anísio Teixeira, Abgar Renault, Mário Casa Santa, Fernando Henrique Cardoso, Octavio Ianni, Antonio Cândido, Paulo Freire e muitos outros. A despeito das diferenças profissionais e ideológicas, o grupo abraçou o desafio de pensar e elaborar a estrutura do sistema educacional do país. A proposta era fazer uma educação organicamente brasileira.
“Aquele representou um dos momentos especiais da história da educação no Brasil”, sentencia Caio Augusto Toledo Padilha, autor da tese “Os intelectuais e a educação: as ideias e as ações entre 1956 e 1964”, defendida no Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Unicamp. Padilha se aprofundou nos princípios elaborados pelos intelectuais reunidos naquele projeto e mapeou a reverberação dos conceitos fundamentais que sobreviveram, a duras penas, mesmo diante das profundas mudanças ocorridas na política brasileira, principalmente desde o governo de Juscelino Kubitschek, no qual foram implantados os CRPEs. A Kubitschek, seguiram-se Jânio Quadros, que renunciou, e João Goulart (Jango), derrubado pelos militares em 1964.
Movidos pelo desejo de mudança e, principalmente, pela ideia de uma democracia a abarcar necessariamente a educação, os intelectuais criaram a estrutura para o sistema educacional do país, afirma Padilha, que é pedagogo, cientista social, mestre pela Faculdade de Educação (FE) da Unicamp e agora doutor pelo IFCH. Para Marcelo Ridenti, professor do IFCH e orientador da pesquisa, a tese contribui “para pensar os alcances, as dificuldades e os limites envolvidos no esforço de implementar um projeto de educação inovador no Brasil”.
O projeto inicial do CBPE, autarquia ligada ao Instituto Nacional de Estudos Pedagógicos (Inep), que fazia parte do Ministério da Educação e Cultura daquele período, foi criado por decreto ao fim do governo de Café Filho. “Não se tratou de um projeto revolucionário, mas de algo reformador e inovador, dentro dos limites que a máquina pública ditava”, avalia Padilha. Havia também uma empolgação com o sonho desenvolvimentista, acrescenta Ridenti. “Uma capital federal criada no meio do nada: isso estava presente também na ideia de formar gente para ajudar no desenvolvimento do país.”
Sem consenso
No Brasil Império e na Primeira República, não havia Ministério da Educação – “os Estados davam as cartas nessa área”. Somente na administração de Getúlio Vargas, ele foi criado e, a partir desse momento, os intelectuais começaram a ser recrutados pelo governo para trabalhar nos órgãos públicos, principalmente durante a gestão de Gustavo Capanema no ministério, ainda no período ditatorial. “Essa intelectualidade era muito heterogênea, tanto que até hoje se fala sobre o fato de Carlos Drummond de Andrade, reconhecidamente comunista, ter trabalhado em um governo ditatorial.”
Gilberto Freyre, em Pernambuco, por exemplo, não estava alinhado com Paulo Freire, então jogado a escanteio pela máquina administrativa. “Paulo Freire apresentou um projeto de pesquisa no Centro Regional que não foi aprovado por questões financeiras, não por questões ideológicas”, avalia Padilha. Segundo Ridenti, o método Paulo Freire, elaborado na mesma década, serviu de semente para a criação do Movimento Brasileiro de Alfabetização (Mobral) no governo militar. “Ou seja, a ideia de alfabetizar adultos teve continuidade, mas eles [os militares] desfiguraram aquele projeto, que passava por pensar o cotidiano”, afirma Ridenti.
O que havia de consenso entre os diversos perfis ideológicos, naqueles anos 1950, era a tentativa de construção de um Estado de bem-estar social, que implicava o uso do poder público para poder oferecer serviços de qualidade e garantir os direitos da população em geral. Nesse momento, também, aprova-se a primeira Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional.
A ideia de Freyre era regionalizar a educação, aproveitar cada vez mais os elementos de cada cultura local. Anísio Teixeira, do Inep, defendia o mesmo conceito. “Ele defendia uma escola próxima da comunidade, capaz de formar para o trabalho e também para a cidadania. Com um currículo formal e práticas de esportes e de artes. Uma escola regionalizada e local. Essa é uma ideia que sobrevive na estrutura educacional de hoje, tanto que temos a municipalização do ensino fundamental.”
Heranças
O CBPE também propôs o ensino médio unificado e integrado – na época havia várias categorias, como a de ensino comercial ou a de agrícola. O planejamento educacional, a coleta de dados pelo Inep, os censos educacionais e o sistema escolar de Brasília somam-se entre as heranças daquele grupo de intelectuais, aponta Padilha, que também menciona a própria Universidade de Brasília (UnB) como prova disso. “Essa ideia de uma universidade formada por departamentos e o fim das cátedras também vem do CBPE. São muitas as contribuições.” Para Ridenti, “o CBPE representou uma chance única perdida naquele momento de constituição da própria intelectualidade brasileira”.
A renúncia de Quadros, em 1961, provocou as primeiras mudanças na formação do grupo. Darcy Ribeiro saiu do CBPE e assumiu a reitoria da UnB, com Anísio Teixeira como vice. No governo Jango, Ribeiro tornou-se ministro da Educação. “O CBPE era uma estrutura autárquica dentro de outra autarquia, de modo que fugia totalmente da burocracia. Quando levaram para dentro do governo, também começaram os embates.”
No contexto econômico, houve uma crise no governo Jango, pressionado pela Guerra Fria e pelo temor estadunidense frente ao comunismo. “Depois, com o golpe e os militares no poder, já não havia o interesse em promover um pensamento autônomo. Eles vão esvaziando [aquela estrutura] por meio da falta de recurso.” No lugar de democratizar, os militares massificaram a educação, diminuindo as possibilidades de avanço na cidadania, na capacidade de elaborar opiniões críticas e no aprofundamento da criatividade, explica o pesquisador.
Entre os diversos fatores políticos e econômicos que inviabilizaram o CBPE, Padilha pontua a falta de uma política duradoura por conta das agendas governamentais que mudam a cada quatro anos, a burocracia, a limitação de recursos e, no aspecto social, a oposição de alguns setores da sociedade àquele projeto. “Dentre os quais a Igreja, que tinha interesses ideológicos e também econômicos na oferta educacional. O empresariado do ensino se organiza no vácuo das oportunidades que não são criadas pelo Estado.”
“Infelizmente, eu acredito que Darcy Ribeiro estava certo quando disse que a crise educacional no Brasil é um projeto. Mas, felizmente, ainda existem as brechas. São os vácuos em que aconteceram a democratização do ensino superior e a universalização do ensino fundamental. No entanto, se pensarmos na estrutura do sistema, ele está posto, foi ali constituído”, conclui Padilha.