Uma dissertação defendida no Programa de Pós-Graduação em His-tória do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Unicamp desafia o pensamento hegemônico sobre a história da população negra livre no mercado de trabalho brasileiro. A pesquisa identifica hierarquias raciais e sexistas que reduziram as oportunidades de atuação no caso das mulheres negras não escravizadas em Campinas, no período final da escravidão e logo após a abolição – entre 1876 e 1892. O trabalho de mestrado, oriundo dos debates promovidos no Centro de Pesquisa em História Social da Cultura (Cecult), surgiu de uma inquietação da sua autora, Taina Silva Santos. “Essa questão de não conseguir ter uma mobilidade social é a minha própria história: sou de uma família negra em que todas as mulheres são empregadas domésticas até hoje.”
A pesquisa, vencedora da quarta edição do Prêmio de Reconhecimento Acadêmico em Direitos Humanos Unicamp – Instituto Vladimir Herzog (Pradh) na categoria Ciências Humanas, Sociais e Econômicas, usou registros de mais de 9 mil pacientes do Hospital de Caridade da Santa Casa de Misericórdia de Campinas, disponíveis no Centro de Memória Unicamp (CMU). Santos cruzou os dados organizados por meio do software Epi Info – pensado para gerenciar dados epidemiológicos –, com informações censitárias, documentos da Assembleia Legislativa Provincial de São Paulo, publicações de jornais, normas de posturas municipais, relatórios de sanitaristas, teses da Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro e o Dicionário de Medicina Popular, de Pedro Luiz Napoleão Chernoviz.
De posse desse material, a pesquisadora conseguiu elaborar um panorama sobre a divisão do trabalho por cor, entender a mentalidade da época e identificar barreiras para a ascensão das mulheres negras – frequentemente taxadas de imorais, propensas a vícios e de saúde frágil. “É comum ouvir que a desigualdade social é uma consequência imediata da escravidão, mas as pesquisas mostram vários mecanismos para interditar o acesso à cidadania dessa população liberta ou livre”, argumentou Lucilene Reginaldo, professora do Departamento de História do IFCH, atual diretora do Cecult e orientadora da dissertação.
O trabalho destaca o papel de teses médicas na desqualificação da mulher negra, associando-a a doenças venéreas ou contagiosas, como a sífilis. Entretanto, a documentação do hospital pesquisado revela que a maioria delas, na realidade, adoecia de tuberculose devido às condições inadequadas de vida e trabalho. A autora do estudo também constatou a influência de normas sanitaristas em determinadas atividades – a exemplo do Código de Posturas de Campinas, que, em 1887, impôs restrições à lavagem de roupas em espaços públicos. “Encontrei registros de revoltas contra médicos que faziam incursões em cortiços e tiravam as pessoas de seus espaços de trabalho, como chafarizes e barracas.”
Segundo a pesquisadora, a suposta robustez do corpo das mulheres negras, antes considerada uma qualidade positiva no caso da amamentação, deixou de ser vista como vantajosa por conta de médicos contrários ao chamado “aleitamento mercenário”, classificado como inferior até mesmo à amamentação feita diretamente em cabras. A discriminação racial fazia-se também explícita em anúncios de empregos. Uma publicação de vaga para ama de leite na Gazeta de Campinas, em 1890, dizia: “Prefere-se que a pessoa que se apresentar seja branca”.
Somaram-se a isso decisões políticas responsáveis por aprofundar a desigualdade racial. A epidemia de febre amarela ocorrida em Campinas entre 1889 e 1897, por exemplo, recebeu atenção do poder público por vitimar principalmente imigrantes europeus. O mesmo não se deu no caso da tuberculose, que matava pessoas negras em igual proporção. “O projeto de branqueamento da população, previsto nessa iniciativa migratória, estava sendo comprometido. Então, o governo criou medidas de proteção à saúde dessas pessoas”, explicou Santos.
Dados do hospital mostram que havia mulheres negras em 11 dos 24 ofícios registrados, principalmente em categorias adotadas pela Santa Casa para classificar afazeres, tais como serviços domésticos e lavadeira. Contudo a imagem difamatória criada a respeito delas fez com fossem preteridas em favor das trabalhadoras europeias. “As negras, mais tarde, retornaram ao trabalho doméstico porque as populações imigrantes e suas descendentes conseguiam sair da pobreza com mais facilidade”, afirmou a orientadora. Santos acrescentou que também o sexismo representou um fator discriminatório, uma vez que o imaginário de mulher respeitável estava relacionado à educação dos filhos e aos cuidados com a família. Mulheres negras livres presentes nos espaços públicos eram malvistas e isoladas do ambiente familiar.
Passado e presente
A dissertação observou ainda que a profissionalização de ofícios como a enfermagem, antes exercida por mulheres escravizadas, contribuiu para o estrangulamento das oportunidades. Entretanto o letramento não era uma garantia de posição estável na sociedade. Prova disso é a trajetória da família Cesarino – família negra com protagonismo na Campinas do século 19 que, em 1860, fundou a escola para moças Colégio Perseverança.
Criada por Antonio Ferreira Cesarino e por sua esposa, Balbina Gomes da Graça Cesarino, a instituição educou todos os membros da família – meninas e meninos negros e também filhas da elite da época –, garantindo uma fonte de renda e profissões respeitáveis a esse grupo. Porém, após o fechamento do colégio, em 1885, os Cesarino não conseguiram manter bons empregos e perderam patrimônio. “Os familiares que entrevistei disseram ter vivido em uma situação econômica instável até Antonio Ferreira Cesarino Júnior [bisneto dos fundadores] se tornar professor de direito da USP [Universidade de São Paulo]”, revelou a autora da dissertação.
As desigualdades raciais motivaram atos de contestação, de violência e mobilizações que marcaram a cidade na segunda metade do século 19, quando os jornais mostravam uma “Campinas abolicionista”, conforme escreveu a pesquisadora. O contexto conturbado é uma das razões pelas quais, diferente de outras localidades, a cidade não criou uma legislação a fim de regulamentar o trabalho doméstico. Para a orientanda e sua orientadora, a pesquisa lança luz sobre uma realidade a marcar ainda profundamente a sociedade atual. “Premiar um trabalho que enfoca o século 19 é reconhecer a sua contribuição para a história de Campinas – da segregação racial da população negra, mas também do protagonismo dessas pessoas – auxiliando a pensar o mundo do trabalho de hoje”, concluiu a professora.