Dona de uma voz singular e inconfundível, Elza Soares faleceu em 2023, no auge da carreira. Mulher, negra e de origem pobre, ela apareceu em público pela primeira vez em 1953. Na ocasião, já escancarou o tipo de tratamento que, no Brasil, era – e que, em certa medida, ainda é – reservado a pessoas como ela quando Ary Barroso, em um programa de calouros, perguntou de que planeta Elza vinha. A futura cantora respondeu: “Do planeta fome”. A função expressiva, sonora e político-social dessa voz transformou-se no tema da dissertação de mestrado da pesquisadora da Unicamp Jesuane Salvador, que se deteve na análise do último álbum da artista, A Mulher do Fim do Mundo, lançado em 2015.
Para Salvador, que fez o mestrado no Programa de Pós-Graduação em Divulgação Científica e Cultural (PPG-DCC), a voz e o disco de Elza Soares funcionam como veículos enunciativos do discurso da mulher brasileira contemporânea. “Quando surgiu o disco, eu o entendi como uma obra social, pensando que seu impacto para a sociedade nos traz mais do que a simples apreciação pelo caráter estético do canto de Elza, mas uma voz, uma biografia e discursos capazes de promover identidade”, aponta.
Em sua análise, o canto surge como uma plataforma de autorrecuperação e subjetivação, refletindo o caráter singular de cada voz em uma “teia na qual somos únicos, mas experienciamos e comunicamos essa unicidade de forma relacional”. Para abordar esses sentidos, Salvador utilizou duas trajetórias constitutivas de voz, analisando o que a emissão vocal revela sobre o emissor – em relação a elementos sociais, históricos, políticos e vivenciais estabelecidos na trajetória de um cantor – e também nos estudos sobre a materialidade vocal, indicando que a voz reverbera sentidos para além e até para aquém das palavras.
No caso de Elza Soares, observa a pesquisadora, destaca-se a trajetória de uma mulher negra que encarou as mazelas da fome, da privação e da violência desde cedo, realidade com a qual muitos sujeitos se identificam. No entanto, como aponta Salvador, ecoam sobretudo as vozes que se levantam contra silenciamentos. “Poucos artistas na história da nossa arte representam de forma tão potente o que Elza simboliza, devido a duas características: a singularidade sonora de seu canto e sua trajetória de vida.”
Rememorando como a plateia emudeceu diante da resposta de Elza para Ary Barroso, a pesquisadora, que também é cantora e jornalista, fala das potencialidades da voz e da presença da artista. “Elza traz esse grito do que foi calado, incomodando muitas pessoas. Ela chocou desde o primeiro momento em que apareceu, não só pela capacidade vocal mas também pela compreensão do que sua presença significava e de como sua voz poderia tocar profundamente as pessoas. Para muito além das palavras das letras das canções, trouxe à tona discussões a respeito de gênero, de raça e de uma realidade social de silenciamentos.”
Entendendo que uma mesma canção, em interpretações diferentes, implica sentidos diferentes, as vozes, segundo Salvador, dizem respeito a quem está cantando, como uma impressão digital, ao mesmo tempo que falam sobre quem ouve. E, assim, estabelecem-se possibilidades de diálogos.
Pelo fato de haver tantos significados contidos no canto de Elza Soares, diz, ninguém consegue ficar indiferente à sua voz. “Essa é uma voz única, em timbre, afinação, divisão rítmica e complexidade de técnicas vocais. Apenas essa singularidade já ofereceria um espaço potente de análise. Contudo, trata-se também de uma voz extremamente relacional, isso porque ela carrega em si o que eu chamo de uma espécie de coro, no qual ouvimos outras vozes que com a dela se identificam”, conclui.
Orientadora do estudo, a professora Márcia Tait destaca que a dissertação traz diversas contribuições significativas, desde o diálogo entre diferentes campos de estudos até a forma como o trabalho se apresenta, propondo audições para serem feitas junto à leitura.
Tait observa que, a despeito de o foco ser a análise mais detalhada do disco A Mulher do Fim do Mundo, o trabalho também foi desafiador por condensar uma trajetória de vida – e artística – quase centenária. “Tudo isso recheado de muita teoria, de muito diálogo com o feminismo negro, de teoria sobre o canto em geral e sobre o canto feminino especificamente. Há uma contribuição muito original no campo teórico, quando a autora fala das singularidades do canto.” A professora também aponta que a pesquisa mostra o canto como um espaço “no qual reverberam discussões que, em outros espaços, nem sempre encontram reverberação”.
“Elza enfrentou uma indústria cultural de massa e momentos históricos difíceis do Brasil. A trajetória dela revela isso e, contemporaneamente, ela superou os limites do próprio corpo. Que artistas temos que ganham tamanha proeminência depois dos 80 anos?”, questiona.
O álbum e a turnê de A Mulher do Fim do Mundo, para Tait, mostram como a cantora conseguiu, até o fim da vida, dialogar com as diversas gerações de artistas e de público. “[No show] ela estava em um trono, abraçada pelos jovens, negros, LGBT, queers. Ela conseguiu tornar-se importante para esses diversos segmentos muito contemporâneos dentro do movimento social ligado ao gênero ou pós-gênero.”
Segundo Salvador, o disco surge em um momento de alterações na estrutura social do país. “Esse é um disco que impacta a sociedade de uma maneira imensa, demonstrando que passamos por mudanças profundas. Sendo assim, torna-se importante refletir sobre de que modo temos trabalhado essas transformações na forma como comunicamos o conhecimento científico, no diálogo entre a arte e a produção científica e na maneira como nossa produção se relaciona com a sociedade. Creio na necessidade de, como pesquisadores, absorvermos essas mudanças, trabalhando com um olhar de inclusão e ampliação de diálogos”, finaliza.
Por A Mulher do Fim do Mundo, Elza Soares ganhou o Grammy de Melhor Álbum de Música Popular Brasileira, o Prêmio Música Brasileira e o Troféu Raça Negra, em 2016.