Para algumas mitologias e culturas religiosas, o inferno é a morada dos mortos, o destino dos condenados ou, ainda, um estado de espírito. Para o filósofo e escritor Jean-Paul Sartre, o inferno são os outros. Contudo, na opinião de Dante Alighieri (1265-1321), poeta florentino basilar para a cultura ocidental e autor da obra Divina Comédia, o inferno tem endereço e é muito bem definido: possui formato de um cone, cujo vértice tem 60 graus, composto por nove círculos cheios de ruínas de antigas pontes, catedrais e cemitérios. Quanto mais profundo o círculo, menor a sua circunferência, abrigando aqueles que cometeram pecados mais graves e, portanto, com penas maiores. O fundo, no centro da Terra, é formado por um lago gelado. Sua entrada fica no subsolo de Jerusalém, cidade tida como o centro do mundo na Idade Média. Considerando as dimensões do planeta, ele teria uma profundidade de cerca de 5.200 km e um diâmetro de 10.300 km.
“O inferno é um dos elementos que dão sentido ao mundo”, descreve Paulo de Tarso Coutinho, arquiteto que, em sua pesquisa de doutorado em Artes Visuais pela Unicamp, propôs um intercâmbio entre diferentes linguagens para sistematizar a arquitetura do inferno pensado por Dante. O trabalho contou com a orientação do professor Haroldo Gallo, do Instituto de Artes (IA).
Estruturas do medo
Ao longo da pesquisa, Coutinho buscou identificar os símbolos e referências presentes na obra de Dante, por meio de análises semióticas e hermenêuticas. Isso possibilitou que o pesquisador trabalhasse uma perspectiva arquitetônica própria, valendo-se da linguagem verbal do texto e das pinturas e ilustrações de artistas posteriores, como Antonio Manetti (1423-1497), Sandro Botticelli (1445-1510) e Gustave Doré (1832-1883). “À medida que lemos Dante, percebemos que o que ele imaginou não é bem o que se imagina sobre o inferno. As pessoas têm a imagem de um lugar pegando fogo, que é tudo o que o inferno de Dante não é. De que maneira eu poderia criar um projeto geométrico que desse sentido a tudo isso e que se transformasse em uma solução arquitetônica?”, questiona.
As primeiras questões que surgiram foram de ordem prática. “Tentamos enxergar o inferno como um espaço e, por isso, ele precisa de circulação. Isso é algo muito sério e presente em nossa profissão, pois estrutura os espaços”, explica Gallo. Assim, um dos aspectos que mais intrigou o autor do estudo foi a forma pela qual cada círculo poderia ser acessado. Dante não oferece pistas a esse respeito, mas as ilustrações de Manetti e Botticelli resolveram o problema por meio de escadas. No entanto, os cálculos do arquiteto excluem essa possibilidade. “A rigor, eles [Dante e Virgílio] teriam descido 36 milhões de degraus”, pontua Coutinho, que projetou os círculos como espirais, permitindo a circulação entre eles sem a necessidade de escadas.
Segundo o pesquisador, Dante utilizou referências arquitetônicas próprias da Florença medieval para dar concretude àquele inferno, algo característico da mentalidade da época. Naquele tempo, a vida era regida pelos preceitos da Igreja Católica e pelo medo, um fator determinante na forma de ver o mundo. “Dante não poderia pensar de outra maneira no auge disso, na Idade Média. Como artista, ele capta esse sentimento e faz dele seu meio de expressão. Por isso, a Divina Comédia é uma busca por dar ordem a esse mundo.”
A tradução das ideias de Dante, plasmadas em seus versos, resultou em quatro vídeos nos quais o autor da tese projeta a arquitetura do inferno segundo sua própria interpretação e de acordo com as perspectivas de Manetti, Botticelli e Doré. Os vídeos compõem o projeto Digital Dante – digitaldante.columbia.edu –, da Universidade de Columbia, nos Estados Unidos, coordenado por Teodolinda Bardini, uma das maiores especialistas na obra de Dante da atualidade e com quem Coutinho manteve contato durante a pesquisa, o que resultou no convite para que o trabalho do arquiteto integrasse o projeto. O trabalho também representa um retorno da Divina Comédia para casa: os vídeos serão exibidos na Bienal de Florença, em outubro deste ano. “Esse é um trabalho que eleva o nome e a qualidade do que se faz em nossa Universidade”, celebra Gallo.
Refletindo sobre a grandeza da obra de Dante e comemorando os frutos obtidos por sua pesquisa, Coutinho não deixa de sentir o impacto de uma alegoria que, desde a Idade Média, povoa o pensamento popular. “O que é mais aterrador a respeito do inferno não é o fato de ser um lugar de torturas ou de fogo. Para mim, o mais assustador é o seu tamanho. Quando pensamos em um lugar com dimensões estratosféricas, sentimos nossa pequenez. É exatamente esse o papel que Dante propôs para o in- ferno: algo tão gigantesco que diminui as pessoas, reduzindo-as a sua mínima dimensão”, reflete o arquiteto.
Este texto foi originalmente publicado por Jornal da Unicamp.