O vaivém nas relações entre o grande empresariado brasileiro e os governos nacionais, marcado por momentos de apoio a políticas de incentivo alternados com períodos de rejeição à ingerência do Estado na economia, está além de convicções ideológicas. Essa postura pendular é conduzida por uma racionalidade que visa à sobrevivência dentro do mercado globalizado e se explica pela posição do país na economia mundial.
Essa é a análise feita por Gabriel de Carvalho Senra em sua pesquisa de mestrado em ciências econômicas no Instituto de Economia (IE) da Unicamp. A partir da recuperação dos modelos de industrialização adotados desde a ditadura militar, Senra descreve os movimentos da burguesia industrial no país e fornece meios para pensar projetos de desenvolvimento que também beneficiem a classe trabalhadora. A pesquisa contou com a orientação do professor Marco Antonio Rocha.
Para ilustrar, Senra menciona que, em 2024, entidades como a Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp) elogiaram o programa Nova Indústria Brasil − que prevê investimentos de R$ 300 bilhões por meio de financiamentos do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES). Em 2015, a mesma entidade, então presidida por Paulo Skaf, capitaneou uma intensa campanha contrária às políticas econômicas do governo Dilma Rousseff. Cinco anos antes, o empresário havia declarado ao jornal Folha de S.Paulo que a relação dos empresários com o então presidente Luiz Inácio Lula da Silva era “excelente”.
Senra baseia sua análise na teoria marxista da dependência. Desenvolvida por pensadores latino-americanos nos anos 1960, esse conjunto de ideias atribui as causas da pobreza em locais como o Brasil a modelos de desenvolvimento capitalista marcados pela subordinação às economias centrais, como as da Europa e dos Estados Unidos. Nos anos 2000, essas ideias voltaram a circular por meio de estudos que analisavam os limites impostos ao desenvolvimento econômico das nações latino-americanas durante a onda de governos progressistas na região. “Apesar de esses países terem alcançado ganhos significativos em termos salariais e de condições de vida, acabaram encontrando limites internos por conta da deterioração de sua estrutura produtiva, além de limites externos muito significativos”, explica o pesquisador.
A partir do governo de Juscelino Kubitschek, a industrialização brasileira passou a basear-se na abertura às multinacionais, modelo que se intensificou durante a ditadura. Porém, conforme essas empresas se modernizaram, concentrando atividades de maior valor agregado em suas matrizes e mantendo o “chão de fábrica” nos países periféricos, o país saiu perdendo. “O Brasil passou a se inserir como ofertante de matérias-primas e insumos básicos no mercado mundial e como importador de insumos, máquinas e equipamentos mais complexos”, destaca Senra.
Some-se a isso a crise da dívida externa dos anos 1980, e surge um Brasil consolidado em sua condição de dependência no cenário internacional. “Não tivemos protagonismo em nosso capitalismo local, nem conseguimos nos capacitar para participar das cadeias que estavam se formando”, aponta Rocha. Segundo o docente, o Plano Cruzado adotado em 1986 significou uma tentativa de estabilizar a inflação crescente sem prejudicar o crescimento econômico. Com seu fracasso, formou-se um consenso na burguesia industrial de que era preciso abandonar o modelo desenvolvimentista e aderir à abertura neoliberal, um movimento iniciado por Fernando Collor de Mello e consolidado por Fernando Henrique Cardoso.
No período em que o ciclo de crescimento gerado pelo modelo neoliberal entrou em crise – causada pelas altas taxas de juros, por um câmbio sobrevalorizado e pela série de crises externas do fim dos anos 1990 –, ocorreu um movimento inverso: o grande empresariado passou a apoiar o projeto neodesenvolvimentista de retomada dos investimentos públicos, via empresas estatais e parcerias público-privadas, e de adoção de políticas de transferência de renda, que dinamizaram o mercado interno. “O governo Lula favoreceu, por todos os lados, a acumulação dos grupos industriais no Brasil e permitiu sua reestruturação nos marcos desse padrão de desenvolvimento”, resume Senra.
Entretanto, os ventos mudaram de direção quando o modelo de desenvolvimento apresentou, novamente, sinais de esgotamento. Após a crise financeira de 2008 e a ascensão da China como potência mundial, o governo de Dilma Rousseff optou por avançar na defesa do capital nacional, mas com base em medidas que diminuíram o favorecimento de setores mais atrelados ao mercado financeiro, como a redução das taxas de juros, a regulação do mercado cambial, a redução nos spreads bancários e o uso de recursos obtidos com a Petrobras para a execução de políticas macroeconômicas.
Apesar de essas ações terem beneficiado o grande capital nacional, o desaquecimento do mercado interno, a contração do mercado europeu e a concorrência chinesa travaram o ritmo dos investimentos. “Praticamente todas as frentes de crescimento colapsaram. Quando uma empresa não vê perspectiva de crescimento, ela não investe”, aponta o pesquisador. O ajuste fiscal adotado no início do segundo mandato de Rousseff, uma tentativa de conciliação, agravou o cenário. “O então ministro da Fazenda, Joaquim Levy, pegou uma desaceleração econômica e a transformou em crise”, sintetiza Rocha.
Equilíbrios e desafios
Segundo Senra, após o impeachment de 2016, os governos de Michel Temer e Jair Bolsonaro empreenderam uma série de reformas reivindicadas pela burguesia industrial, como a trabalhista e a da previdência, retomando a sua concentração de riqueza. Outras mudanças infralegais, como a desregulamentação do mercado cambial, também caminharam nessa direção. Porém, um novo esgotamento do modelo motivou o apoio ao projeto de incentivo desenvolvimentista de Lula, em 2022.
Para os pesquisadores, o atual governo age para articular políticas desenvolvimentistas com uma agenda fiscal que pode dificultar esses investimentos. Senra e Rocha advertem para os riscos de uma condução econômica que tente contemplar todos os setores, mas que não os atenda integralmente. “Assim como o governo Dilma, de certa forma, foi marcado pela tentativa de cumprir uma agenda em que não havia instrumentos e meios para fazer isso, o atual governo Lula, por enquanto, se caracteriza por um cenário que também aponta nessa direção”, avalia Rocha.