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Transporte de moradores de aldeia em barco da Emsi (Equipe Multidisciplinar da Saúde Indígena) no rio Oiapoque: deslocamento de médicos e problemas estruturais estão entre os gargalos
Transporte de moradores de aldeia em barco da Emsi (Equipe Multidisciplinar da Saúde Indígena) no rio Oiapoque: deslocamento de médicos e problemas estruturais estão entre os gargalos

Apesar de o Programa Mais Médicos (PMM) não ser especificamente voltado a populações indígenas, foi por meio desse projeto que alguns dos Distritos Sanitários Especiais Indígenas (Dseis) receberam os seus primeiros médicos, em sua grande maioria vindos de Cuba. A forma como o PMM foi implantado no Subsistema de Saúde Indígena (SasiSUS), parte do Sistema Único de Saúde (SUS), e o impacto da presença de médicos nos processos de saúde-doença-cuidado-cura na região amazônica viraram tema da tese de doutorado defendida por Karine Assumpção no Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Unicamp.

Criado em 1999, o SasiSUS atua por meio de 34 Dseis e visa garantir aos povos indígenas acesso à atenção integral à saúde. No entanto, a implantação do sistema enfrenta desafios como, por exemplo, a falta de médicos interessados em atuar nas regiões atendidas. Esse problema foi parcialmente solucionado pelo PMM, programa criado para suprir a carência de médicos no interior do país e nas periferias das grandes cidades.

Segundo dados da Secretaria Especial de Saúde Indígena obtidos pela pesquisadora, 519 médicos cubanos trabalharam nas áreas indígenas entre 2013 e 2017. A região do Baixo Oiapoque, para onde a pesquisa de Assumpção voltou-se, recebeu seu primeiro médico somente depois do programa, em 2014. “A política do Programa Mais Médicos chegou aos territórios indígenas e levou médicos para atuarem simultaneamente em todos os Dseis, um fato inédito desde a criação do subsistema”, observa.

A antropóloga lembra que o SasiSUS é uma conquista das populações originárias do país. O sistema passou a funcionar após mais de uma década de debates e da tramitação do seu projeto, que, mesmo sancionado, enfrentou vários desafios. “Por meio dele, é para ser ofertada atenção à saúde primária considerando outras formas de ser e estar que não só a biomédica, respeitando os direitos internacionais dos povos. A questão é que às vezes existem legislação e diretrizes bem desenhadas, mas não há necessariamente formação de corpo técnico. Em geral, no Brasil, não há uma formação [acadêmica] que leve em conta essa diversidade”, analisa.

Essa formação padrão, aponta a pesquisadora, revela-se uma deficiência presente em todo o país. “Eu mesma não tinha conhecimento sobre os povos indígenas do país antes da faculdade.” Além disso, para Assumpção, que também é servidora da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai), o SasiSUS não diz respeito apenas à presença ou não de médicos. Por isso, certos problemas continuaram existindo. “A ausência ou presença dos médicos é uma visão genérica sobre a desassistência e, dentro da saúde indígena, há outros poréns. Não existia quem fizesse pregão em determinados locais. Sem pregão, não hátransporte. O médico fica na sede do Dsei e não consegue se deslocar para as comunidades. Isso é um problema.”

Karine Assumpção, autora da tese, durante atividade profissional: para antropóloga, o SasiSUS é uma conquista das populações originárias
Karine Assumpção, autora da tese, durante atividade profissional: para antropóloga, o SasiSUS é uma conquista das populações originárias

Para além da humanização No seu trabalho de pesquisa, Assumpção tratou também dos cursos de medicina oferecidos em Cuba e no Brasil. A pesquisadora explica que há uma diferença importante entre eles. “No Brasil, prioriza-se a construção individual da carreira, que não se volta necessariamente para atender os interesses públicos. Em Cuba, ensina-se medicina de acordo com as necessidades da população cubana. Há uma priorização do ser humano, da dignidade humana e da promoção de uma boa vida para as pessoas, em todo o percurso formativo.”

Dessa forma, quando os médicos cubanos chegaram ao Brasil, viu-se muito da chamada “medicina humanizada”, que diz respeito a um maior grau de sensibilidade dos profissionais no trato com os pacientes. Observou-se também uma integração mais plena dos médicos com a comunidade local. Esse fato ganhou um exemplo, na tese, com o caso de um médico cujo interesse pela cultura dos povos indígenas o levou a cultivar uma horta de plantas medicinais na Terra Indígena Uaçá, junto aos Palikur-Arukwayene, no Amapá.

No entanto, pondera a antropóloga, humanizado não quer dizer diferenciado. “Quando a gente pensa que atuar junto aos povos demanda uma atenção diferenciada é porque faz-se necessário considerar as diferentes línguas e culturas que existem no Brasil.” Além disso, aponta, um profissional sozinho não consegue resolver os problemas de um sistema de saúde, por mais sensível que seja às necessidades particulares de um dado grupo de pessoas. “É preciso pensar a medicina e a antropologia dialogando mais entre si para alcançarmos um maior grau de respeito com a diversidade presente no país”, indica.

Orientadora da tese, a professora Artionka Capiberibe destaca que o trabalho de Assumpção evidenciou, em primeiro lugar, o fato de a política de atendimento aos povos indígenas não estar funcionando. “Ou seja, existe uma política e uma legislação que deveriam impor esse atendimento. Isso não está acontecendo, mas esse cenário pode mudar com o retorno dos médicos cubanos, que são profissionais sem restrição quando se trata de atuar em regiões longínquas.”

Para Capiberibe, outra característica importante da pesquisa de Assumpção é a análise que abrange desde o desenvolvimento de políticas públicas até os seus resultados, traduzidos em benefícios para os usuários. “Karine inova porque faz algo difícil e que tem a ver com esse processo pessoal de ter virado servidora e refletido
sobre o que é formular e implementar essas políticas.” Para a tese, intitulada “Saúde indígena institucional, Programa Mais Médicos e cooperação cubana: a atenção diferenciada a partir do Distrito Sanitário Indígena Amapá e norte do Pará”, Assumpção realizou entrevistas com gestores das políticas, profissionais de saúde indígenas e não indígenas e líderes indígenas, além de visitas a Cuba e Amapá entre 2018 e 2022.

Entre as conclusões a que a pesquisadora chegou, está a necessidade de combater o racismo estrutural nas políticas de Estado e na formação de profissionais para garantir a efetividade das ações de promoção da saúde junto aos povos indígenas.

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