Formulação em gel associando três ativos de classes farmacêuticas diferentes: paciente poderá usar um único produto durante o tratamento
O desafio era minimizar as várias queixas de um paciente com queimaduras usando uma única formulação farmacêutica. A pesquisadora Janaína Artem Ataide abraçou a ideia e lançou mão da nanotecnologia para desenvolver um gel associando três ativos de classes farmacêuticas diferentes. O estudo realizado por Ataide em seu doutorado na Faculdade de Ciências Farmacêuticas (FCF) da Unicamp, que também incluiu o uso de um extrato de oleaginosa nacional e ensaios para o reposicionamento da rifamicina, encontra-se em análise de patenteabilidade, a cargo da Agência de Inovação da Unicamp (Inova Unicamp).
Graduada em Farmácia, Ataide afirma que ainda há um longo caminho a percorrer até a fórmula eventualmente chegar às prateleiras. Contudo, uma vez patenteada, as chances de isso acontecer aumentam, acredita Priscila Gava Mazzola, professora da FCF e orientadora da tese. “A pesquisa ganha o olhar de outro público científico, de pesquisadores de outros lugares, além dos nossos colegas. E pode chegar às empresas, para viabilizar a condução [da produção]. Torna-se mais viável bancar o custo da pesquisa fora da Universidade, porque há mais recursos e pode haver gente 100% focada no projeto. Portanto aumentam as chances de a pesquisa continuar”, avalia Mazzola.
Segundo Ataide, as etapas ainda necessárias para a fórmula resultar em um produto incluem, por exemplo, estudos em animais e em seres humanos. “São etapas que fogem da nossa expertise e que têm alto custo”, diz a pesquisadora. “A ciência se faz em colaboração”, escreveu Ataide em sua tese, citando a frase do professor de física Brian Keating, da Universidade da Califórnia (Estados Unidos). “Nenhum cientista vai a Estocolmo [Suécia] sozinho”, disse ele referindo-se ao Prêmio Nobel.
Uma das motivações da farmacêutica para se dedicar a uma formulação voltada a vítimas de queimaduras está no boletim epidemiológico do Ministério da Saúde, segundo o qual, no período de 2015 a 2020, foram registradas 19.772 mortes por queimaduras no Brasil (de causas térmicas ou elétricas, por agentes químicos, por geladura ou por radiação). As doenças de pele são a quarta causa mais comum de enfermidades humanas em todo o mundo. “Isso afeta quase um terço da população, segundo estimativas da Organização Mundial de Saúde [OMS], mas são dados muitas vezes subestimados. Isso é realmente assustador”, diz Ataide.
Com a formulação desenvolvida, o paciente pode usar um único produto durante o tratamento, ao invés de utilizar três ou quatro, evitando assim trocas ou reaplicações de medicamentos diferentes, defende a autora da pesquisa. “E acho que a principal vantagem está na eficiência do sistema nanoestruturado com ativos combinados na mesma formulação farmacêutica, além de se tratar de uma pesquisa nacional, com uso de extratos naturais brasileiros”, afirmou.
A pele é o órgão mais exposto do corpo humano, portanto o que corre mais riscos, explica Ataide. Esse órgão desempenha ainda a importante função de oferecer uma barreira protetiva. Por isso, é fundamental cuidar bem da saúde da pele. “A população precisa de medicamentos eficientes, seguros, de custo relativamente baixo e disponibilizados pelo Sistema Único de Saúde [SUS]”, defende.
Desafios da nanotecnologia
Em seu mestrado, também sob a orientação de Mazzola, Ataide já havia usado a nanotecnologia. Aquela pesquisa, sobre uma enzima do abacaxi, resultou em uma patente. A farmacêutica trabalhou na época com a extração da proteína bromelina do complexo enzimático do abacaxi. “Tivemos muita dificuldade com a bromelina devido à falta de estabilidade. Veio então essa ideia de usar nanotecnologia para tentar estabilizar a proteína. Foi assim que a nanotecnologia entrou na minha vida”, lembra a pesquisadora. “Foi muito desafiador.”
“De fato tratou-se de algo muito trabalhoso”, reforça Mazzola. A pesquisa utilizou um resíduo da indústria – as cascas do abacaxi – para recuperar a enzima, que então poderia ser usada pela indústria farmacêutica. Foi justamente a formulação de nanopartículas de bromelina com quitosana liofilizadas, desenvolvida no mestrado, que se transformou em patente. A fórmula pode ser aplicada como um spray sólido ou em outras preparações, como em gel para cicatrização. Desde o mestrado, portanto, orientadora e orientanda realizam ensaios com a cicatrização. “No doutorado a ideia foi continuar a trabalhar a questão das queimaduras.”
Contribuição para novas pesquisas
De acordo com Mazzola, a pesquisa de doutorado de Ataide representou a primeira vez em que o laboratório da FCF trabalhou com diferentes frentes de ação em torno de um mesmo produto. “Esse é um ponto muito importante. Os ativos são conhecidos, mas fizemos outra abordagem na forma de veiculá-los e apresentá-los. O trabalho [de Ataide] pode contribuir para o desenvolvimento de novos medicamentos e novas apresentações. Isso tem muito valor”, afirma a professora. Entre os apontamentos dos testes destacados na pesquisa está a propriedade das nanopartículas de servirem como carreadores de insumos farmacêuticos ativos (IFA), especialmente por conta de sua capacidade de fazer a entrega simultânea de dois ou mais IFAs e por conta de possibilitarem uma entrega direcionada.
Os testes realizados por Ataide revelam-se conclusivos quanto ao potencial das nanopartículas como carreadores de fármacos: “[As nanopartículas] são uma grande promessa nos dias atuais por transportarem medicamentos até o alvo de interesse, diminuindo os efeitos colaterais”. A tese, intitulada “Desenvolvimento de formulações de base nanotecnológica: estratégias para entrega simultânea e reposicionamento de fármacos”, contou com o financiamento da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp) no país e no exterior, possibilitando que Ataide realizasse estudos também nos Estados Unidos, durante um ano, período no qual trabalhou o reposicionamento de fármaco da rifamicina.
Parte do doutorado transcorreu na pandemia. “Eu estava entrando na parte da formulação, quando começou a pandemia. Foi tudo suspenso. Até achei que não fosse dar para fazer nada. A primeira etapa das minhas análises transcorreu totalmente à distância. Algumas vezes eu levei as amostras, entreguei na recepção dos laboratórios parceiros e recebi as fotos na minha casa”, lembra a pesquisadora, que contou com a parceria do Laboratório Nacional de Nanotecnologia (LNNano) do Centro Nacional de Pesquisa em Energia e Materiais (CNPEM).
“Essas parcerias fazem toda a diferença”, afirma Ataide. “Não somos especialistas em tudo, por isso precisamos das parcerias”, reitera Mazzola. Para a professora, a pesquisa mostra-se promissora também aos olhos das instituições de fomento. “Isso é valioso porque não é fácil conseguir auxílio para pesquisa. E nós queremos transformar a nossa pesquisa em algo prático, que chegue ao paciente e ao mercado, um produto farmacêutico eficiente e acessível na prateleira”, diz a orientadora.
Texto publicado originalmente no Jornal da Unicamp.