O mundo do trabalho sem direitos decorrente da uberização desembocou não apenas em jornadas longas e extenuantes, mas também ampliou o processo de precarização das demais esferas da vida do trabalhador – em especial aquelas concernentes à cultura, ao lazer e às práticas esportivas. Essa é uma das principais conclusões da tese de doutorado apresentada à Faculdade de Educação Física (FEF) da Unicamp pelo pesquisador Bruno Modesto Silvestre no final de 2023. Intitulada “Eu trabalho no meu tempo livre – Lazer e cotidiano sob a uberização – quando o trabalho toma conta da vida”, a pesquisa contou com a orientação da professora Silvia Cristina Franco Amaral e teve como objetivo analisar de que forma esses trabalhadores dividem seu dia a dia entre o trabalho, o tempo livre e o lazer.
O pesquisador recolheu o depoimento de 80 trabalhadores uberizados – que prestam serviço a empresas que atuam a partir de plataformas digitais. Desses, 12 encontravam-se em São Paulo e 68, em Pernambuco. Foram entrevistados motoristas de aplicativos, entregadores que fazem uso de motocicletas e entregadores que utilizam bicicletas. “A propaganda diz que o trabalhador uberizado teria liberdade para organizar seu tempo de trabalho e seu tempo livre. O que a gente percebeu foi uma ocupação do tempo livre pelo tempo de trabalho. O tempo dedicado ao lazer é apenas residual”, disse Silvestre. A pesquisa mostrou que um dia típico dos motoristas de aplicativo tem 13,99 horas de trabalho; o dos entregadores motociclistas é de 12,52; e o de entregadores ciclistas, de 12,51.
De acordo com o levantamento, a consequência de uma atividade laboral marcada por precariedade, intensidade e desregulamentação é a quase inexistência de tempo para o lazer. Além disso, ao analisar o uso do tempo feito por trabalhadores que disseram ter tido pelo menos um dia de folga, o pesquisador observou a predominância de dois tipos de atividade – assistir à televisão e descanso.
Em média, o tempo gasto com o consumo de mídia de massa entre os motoristas foi de 153,5 minutos, entre os motociclistas, de 155,63 e entre os ciclistas, de 169,38 minutos. “Trata-se, sobretudo, de atividades [de lazer] desenvolvidas no ambiente doméstico e que estão vinculadas ao repouso ou a uma tentativa de recuperar as energias para o novo dia de trabalho que virá”, expli- cou o pesquisador.
Silvestre avalia que, no Brasil, os uberizados já têm carga de trabalho igual à de trabalhadores do início da Revolução Industrial, no século 18. “Temos gente que trabalha até mesmo 24 horas; dezoito, já está virando padrão. Conversamos com mulheres motoristas de aplicativo no Recife que começam a trabalhar às 13h da sexta-feira e só param na madrugada da segunda. Essas mulheres dormem, em cochilos rápidos, entre uma corrida e outra”, revela o autor do estudo.
“E aí, o que acontece? Elas têm de folgar na segunda. E sabe o que elas fazem? Aproveitam o dia para dormir, descansar ou levar o carro para lavar ou fazer manutenção. A precariedade do trabalho não respeita fronteiras. A realidade do trabalho no Brasil é dura. O que a gente entende por uberização é a generalização da precarização do trabalho em todas as regiões do país”, afirma o pesquisador.
Diário
Para fazer a medição do uso do tempo pelos trabalhadores, em uma primeira etapa, Silvestre utilizou as entrevistas. Em seguida, criou um diário a ser preenchido pelos trabalhadores, elencando vários tipos de atividade – como as ligadas à educação, à socialização, às necessidades básicas, aos cuidados pessoais, entre outras. O grupamento que tratou especificamente de lazer e cultura foi dividido em sete tópicos, de modo a identificar o tipo de passatempo preferido do trabalhador.
O tópico sobre participação em e visita a eventos locais, culturais e de entretenimento esportivo, em um dia de trabalho, não registrou nenhuma ocorrência tanto no caso dos motoristas como no dos motociclistas e ciclistas. No dia de descanso, a presença em eventos culturais atingiu 46,25 minutos entre os ciclistas, 20 minutos entre os motoristas e apenas 11,25 minutos entre os motociclistas. Já o tempo dedicado a atividades esportivas em um dia de folga somou apenas 21 minutos para os motoristas e um valor ainda menor para os motociclistas que reservaram 15 minutos para essa atividade. Os ciclistas, por sua vez, registraram 33,75 minutos.
A tese mostrou que o trabalhador uberizado cumpre jornadas mais flexíveis e mais longas que a média das pessoas ocupadas no Brasil. Dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad Contínua), do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatítisca (IBGE), utilizados na tese mostram que, em 2022, a média de horas trabalhadas por semana pelas pessoas ocupadas no Brasil foi de 38,49. No caso dos condutores de automóveis, táxis e caminhonetes, a média sobe para 43,79. Já para os condutores de motocicletas vinculados a empresas de plataformas digitais, a média semanal verificada foi de 45,51.
Por conta da extensa jornada e por atuar sempre atendendo a uma demanda sobre a qual não tem qualquer controle, o trabalhador encontra dificuldade para planejar seu tempo livre. “Não é que ele não possa planejar. Ele não tem como. Ele se vê preso. Se não atingir determinadas metas, não terá dinheiro para pagar as contas”, argumenta Amaral.
Quando, eventualmente, esse trabalhador consegue realizar alguma atividade de lazer, o período pós-lazer caracteriza-se por uma carga ainda maior de trabalho, como forma de compensar pelo tempo de serviço não executado, explica Silvestre. “No diminuto tempo de lazer que lhes resta, foi notada a prevalência de vivências precárias e fragmentadas, em que se sobressai o lazer na forma mercadoria”, diz o pesquisador, acrescentando que, nesse contexto, o lazer deixa de ser um direito social e passa a valer apenas para quem paga por ele.
“Se esse é um direito social, tem de ser para todos. Tem de ser produzido com aquilo que a gente paga de imposto. O que o Estado – não só o Estado brasileiro, mas as nações em geral – está promovendo é a privatização do direito, que passa a ser consumo e não direito”, critica a orientadora da tese. Para Amaral, a oferta de lazer para a parcela mais vulnerável da população passa atualmente por um processo de mudança. “Deve haver investimento em políticas públicas por meio das quais as cidades se tornem espaços voltados para os moradores e não para o turismo massivo ou para o consumo conforme temos hoje”, resume.