Em 2022, um relatório do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC, na sigla em inglês) trouxe o alerta de que o planeta só conseguirá manter o limite de 1,5o C no aumento da temperatura global – estabelecido pelo Acordo de Paris (2015) – caso as emissões de gases do efeito estufa sofram uma redução significativa antes de 2025. O documento também enfatizou que, para tal meta acontecer, é necessário haver um esforço adicional de remoção do dióxido de carbono liberado nos processos industriais. Um importante passo nesse sentido pode ser a implementação de sistemas Beccs, tecnologia que tem no Brasil um dos países com maior potencial para se estabelecer.
Acrônimo em inglês para Bioenergia com Captura e Armazenamento de Carbono, a Beccs consiste em uma tecnologia que une a geração de energia proveniente de recursos renováveis – como a produção de etanol a partir da cana-de-açúcar – com a captura do dióxido de carbono gerado no processo, que é tratado e depois armazenado em uma formação geológica. Dessa forma, enquanto iniciativas tradicionais de captura e armazenamento de carbono (CCS, na sigla em inglês) são associadas à queima de combustíveis fósseis – como o gás natural –, os sistemas Beccs dão um passo além ao contribuir para emissões negativas de gases do efeito estufa, ou seja, liberando a menor quantidade possível desses gases e reabsorvendo as emissões que restarem.
“Essa tecnologia já é comercial, mas ainda não chegou a todos os lugares do mundo. Em geral, ela está concentrada na América do Norte, em parte da Europa e na Ásia”, afirma a engenheira mecânica Sara Alexandra Restrepo Valencia. Dentro do programa de doutorado em Planejamento de Sistemas Energéticos da Faculdade de Engenharia Mecânica (FEM) da Unicamp, a pesquisadora defendeu uma tese sobre a viabilidade técnico- -econômica dos sistemas Beccs na geração de energia a partir da biomassa de cana-de-açúcar, recurso disponível em larga escala e a um custo relativamente baixo nas usinas brasileiras. O problema, explica, é que, apesar de ser uma das alternativas mais promissoras para atender aos objetivos do Acordo de Paris, seu emprego em larga escala ainda enfrenta desafios.
O primeiro deles está relacionado ao custo adicional significativo da captura desse gás, que precisa ser compensado de alguma maneira – como a venda de créditos relativos às emissões evitadas – e à necessidade de identificar um local adequado para o armazenamento do gás capturado. Segundo Arnaldo Walter, docente da FEM e orientador do estudo, há ainda a questão da percepção pública sobre a segurança do procedimento. “Um outro aspecto é o regulatório. É preciso haver uma determinação legal sobre onde será injetado o gás capturado, quem vai fazer esse procedimento e quem terá o direito de comercializar o certificado de emissões evitadas. Tudo isso ainda é bastante embrionário no Brasil”, salienta.
O estudo realizado por Valencia consistiu em simulações computacionais que avaliaram diversas rotas tecnológicas de cogeração, termo que se refere à produção de energia de várias formas, nesse caso aproveitando a biomassa da cana. Em seguida, a pesquisadora considerou a implementação de sistemas de captura e armazenamento de carbono tanto nessas usinas como em uma termelétrica dedicada apenas à geração de eletricidade e que utiliza a biomassa excedente de uma usina próxima. “Com isso, a gente fez a modelagem econômica sobre como seria essa implementação da captura e do armazenamento. Quais produtos seriam utilizados? Qual teria que ser a remuneração adicional? Qual seria o custo mínimo da tonelada do gás capturado em relação aos custos adicionais da usina?”, enumera.
Os resultados indicaram que, se o gás da queima da biomassa for capturado junto com o do processo de fermentação do etanol – modelo tradicional de produção de combustível que também libera dióxido de carbono –, será possível chegar a uma emissão negativa na cadeia da cana. Por outro lado, o estudo concluiu que as tecnologias mais avançadas para geração elétrica e captura de carbono ainda são inacessíveis no contexto brasileiro, pelo menos a curto e médio prazo. Ainda assim, como a fermentação é limitada pela quantidade de etanol produzido em uma usina, o estudo sugere que as demais alternativas podem ser empregadas em sistemas de demonstração, para verificar sua viabilidade no sistema canavieiro do Brasil.
A pesquisa de Valencia venceu o Prêmio Capes de Teses de 2023 na categoria interdisciplinar. Para o orientador, certamente pesou na avaliação o fato de os resultados do estudo terem sido publicados em periódicos internacionais de grande visibilidade, bem como o escopo do trabalho, que aborda uma variada gama de assuntos. “A tese apresenta uma discussão introdutória de caráter ambiental, aborda os aspectos técnicos associados à simulação do sistema e investiga o aspecto econômico relacionado à comparação entre várias alternativas e os custos de mitigação”, explica.
Além disso, ressalta o professor, o estudo sobrepôs informações de geoprocessamento sobre a localização das usinas estudadas com os possíveis pontos de injeção de dióxido de carbono, como uma forma de minimizar os custos com o transporte do gás a ser armazenado. Isso foi feito com base nos dados de um atlas de captura e armazenamento de carbono, que indica os locais mais aptos para receberem esse material a partir de aspectos como profundidade, porosidade e permeabilidade, a fim de não haver risco de esse gás se desprender no futuro. No estudo de caso, foram identificados cerca de dez pontos apropriados para armazenamento do gás na Bacia do Paraná.
Atualmente, Valencia atua como docente na Universidade Autónoma de Manizales (Colômbia), onde tenta viabilizar projetos de pesquisa sobre o sistema Beccs. Naquele país, a quantidade de usinas de cana-de- -açúcar é bem menor do que a existente no Brasil, mas seus proprietários também estão começando a se interessar pelo tema da cogeração. “Fica aqui esse gosto pelo sistema Beccs e pela captura de dióxido de carbono, que foi o meu tema de pesquisa no mestrado e no doutorado. É algo que está chegando aos poucos à Colômbia, onde ainda há uma parcela importante de geração de eletricidade a partir de combustíveis fósseis”, finaliza.
Este texto foi originalmente publicado aqui.