Qual foi o efeito da migração sobre a média do número de filhos por família durante o início da transição da fecundidade brasileira, ocorrida na década de 1960? De acordo com uma tese defendida no Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Unicamp, 37% da mudança no padrão reprodutivo registrada nessa época decorreu dos processos migratórios. Desencadeados pelo surgimento dos grandes centros urbanos e pela construção de estradas ligando o país, os processos migratórios, em especial os do meio rural para o urbano, levaram as mulheres das famílias de migrantes a terem menos filhos do que suas conterrâneas, contribuindo para a queda na taxa de natalidade observada desde então.
Desenvolvida pela demógrafa Camila Soares no Núcleo de Estudos de População “Elza Berquó” (Nepo), a pesquisa demonstrou ainda que migrar para um ambiente com condições socioculturais muito diferentes das existentes no domicílio original fez com que essas mulheres tivessem uma quantidade de filhos mais próxima da existente nos locais de destino. Ainda assim, houve uma diferença de fecundidade entre as migrantes que chegaram aos centros urbanos e as mulheres que já viviam nesses locais, diferença essa, porém, que diminuiu ao longo dos anos. Até certo ponto, a migração rural-urbana contribuiu para frear um pouco a queda da taxa de natalidade nas áreas mais urbanizadas.
“Com o passar do tempo, o rural e o urbano foram se igualando quanto ao número de filhos, isto é, as diferenças, ao longo dos anos, foram se reduzindo”, explica Soares. “Esse é um padrão que a gente observou em todos os grupos migratórios. A migração e a transição da fecundidade aqui no Brasil começam com diferenciais regionais, mas, ao longo dos anos, a taxa vai se igualando em relação às duas situações de domicílio”, esclarece a pesquisadora.
Existem diversos fatores para explicar a queda de fecundidade entre as mulheres que vieram do meio rural. Em primeiro lugar, elas viram-se, de repente, em um local desconhecido, sem a sua rede de proteção tradicional e com poucas condições financeiras para terem mais filhos. Em segundo lugar, há a hipótese da seletividade, segundo a qual essas mulheres, ao se decidirem por migrar para trabalhar ou estudar, já alimentavam uma predisposição de repensar o momento certo para formar uma família. Além disso, o contato com novos meios de comunicação e um modo de vida completamente diferente do de seu local de origem podem ter exposto essas mulheres a novas ideias sobre o conceito de família.
Nessa época, observava-se um processo de migrações de longa distância, em que habitantes de regiões rurais do Norte e Nordeste do Brasil deslocavam-se em massa para cidades do Sul, Sudeste e Centro-Oeste, experimentando um choque cultural. “O Brasil estava deixando de ser uma sociedade completamente agrícola para se tornar uma sociedade industrial. E algumas pessoas das áreas rurais começaram a ir para as cidades, áreas das indústrias, em busca de emprego e de melhores condições de vida”, relata Soares.
O estudo
Para chegar a esses resultados, a pesquisadora realizou um estudo de coorte – ao longo do tempo histórico – com base em dados dos censos demográficos realizados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) nos anos de 1970 e 1980, que contêm informações sobre a situação domiciliar anterior e atual dessas mulheres. A partir dessa base de dados, a pesquisadora selecionou migrantes com idades entre 35 e 54 anos que moravam no seu domicílio atual há pelo menos cinco anos e que haviam migrado antes dos 40 anos de idade. Seu objetivo era focar tanto mulheres que já estavam no final de seu ciclo reprodutivo como aquelas que ainda poderiam ter filhos após a migração.
De acordo com o professor Everton Lima, que orientou o estudo, o emprego de dados do censo mostra-se uma das principais contribuições do trabalho de Soares porque se trata de uma base de dados disponível em quase todos os países, o que torna possível a replicabilidade do método. “Normalmente, quando você quer estudar a relação entre mudança de comportamento reprodutivo e mobilidade populacional, você precisa de bases muito específicas. Quem conduz pesquisas nessa direção faz seu próprio survey. Contudo, ela criou um método que permite fazer essa análise com uma base [de dados] já existente. Então, é possível aplicar, em outros lugares, as mesmas coisas que ela estudou”, aponta.
Outro aspecto relevante da pesquisa foi a possibilidade de mensurar o quanto a migração afetou o comportamento reprodutivo no Brasil, algo que, segundo Lima, parece ser inédito dentro desse campo de pesquisa. Isso porque existem poucos estudos sobre o tema no país e esses tendem a ser muito localizados, focando processos migratórios entre cidades específicas. Além disso, teses na área de demografia – campo que estuda a natalidade, a mortalidade e a mobilidade das populações – costumam explorar apenas um desses componentes, uma vez que promover o diálogo entre eles costuma ser algo muito complexo levando-se em conta o prazo disponível para a conclusão de um doutorado.
O trabalho de Soares, por outro lado, analisou a relação entre fecundidade e processos migratórios que ocorreram no território brasileiro em sua totalidade e também, de forma específica, em cada uma das grandes regiões do país, visto que o declínio da natalidade ao longo das décadas ocorreu de forma diferente nessas áreas. “Ela foi bem mais ambiciosa e tentou analisar algo que até então a gente não tinha. A questão migratória relacionada com a reprodução ainda é uma agenda aberta no Brasil e a Camila preencheu uma lacuna nessa discussão. Penso que essa é a grande contribuição do estudo”, argumenta o docente.
Este texto foi originalmente publicado aqui.