Em novembro de 2024 revelou-se o quão próximo o Brasil esteve de um golpe de Estado após a derrota de Jair Bolsonaro nas eleições de 2022. O ex-presidente e membros do seu governo, dentre eles militares, foram indiciados pela Polícia Federal por crimes como o de tentativa de abolição violenta do Estado democrático de direito após vir à tona a trama que incluía o assassinato dos então recém-eleitos presidente e vice-presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva e Geraldo Alckmin, e do ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Alexandre de Moraes.
Ainda assim, a ultradireita segue angariando um grande apoio, no país e fora dele. Nos Estados Unidos, a vitória de Donald Trump, que retornará à Presidência após quatro anos, para um segundo mandato, sinaliza uma guinada ainda mais radical à direita, dada a configuração do seu novo governo, que congrega desde negacionistas antivacina ao bilionário Elon Musk, conhecido por suas tentativas de interferir nos rumos políticos de diversos países.
Os reflexos desse governo no Brasil, bem como a configuração política do país depois das eleições municipais, que resultaram em um fortalecimento da direita e do chamado “centrão”, figuram entre os temas tratados na entrevista concedida pelos cientistas políticos Armando Boito Jr. (Unicamp), Fernando Limongi (Universidade de São Paulo, USP), Flávia Biroli (Universidade de Brasília, UnB) e Rachel Meneguello (Unicamp).
Os docentes participaram do seminário em comemoração aos 50 anos do Programa de Pós-Graduação em Ciência Política da Unicamp, realizado entre os dias 12 e 14 de novembro. Justamente nesse período, mais um violento episódio relacionado à extrema direita ocorria na Praça dos Três Poderes, na capital federal, quando um homem ligado ao Partido Liberal (PL), sigla de Bolsonaro, tentou, em 13 de novembro, atacar o STF munido de bombas.
A avaliação dos docentes é unânime quanto à urgência de combater as ações extremistas no país, como ressalta Meneguello: “[…] A democracia não pode mais prescindir da atenção às, da prevenção contra as e do combate às forças de uma extrema direita golpista presente em partidos, parlamentares, corporações e grupos sociais”.
Na entrevista a seguir, os professores também analisam as mais recentes eleições municipais. Para Limongi, ainda que o pleito tenha fortalecido a direita, que comandará cerca de 80% das prefeituras do país, também houve um resultado que pode ser favorável à extrema direita futuramente, já que Bolsonaro encampou nomes para disputar vagas no Senado Federal em 2026. “Em cada uma das regiões brasileiras, ele conta com um candidato forte para o Senado, que é o seu principal objetivo: obter o controle do Senado para daí obter algum poder sobre o Supremo Tribunal Federal”, diz.
Os professores também comentam o contexto internacional, no qual o governo Trump, além de criar dificuldades para uma agenda global em torno de pautas como as mudanças climáticas e os direitos humanos, também deverá impor desafios, na área econômica, para o Brasil, como avalia o professor Boito. Segundo o cientista político, será difícil para o país manter, junto ao grupo formado por Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul (Brics), o processo de desdolarização da economia mundial. “Trump já declarou que a perda do monopólio do dólar como moeda internacional seria o mesmo que perder a Terceira Guerra Mundial. Ele fará de tudo para impedir que esse processo avance”, afirma.
Com vistas ao futuro, indica Biroli, faz-se necessário que os setores progressistas elaborem “alternativas concretas à violência e ao retrocesso civilizacional da extrema direita, assim como aos efeitos de precarização da vida no neoliberalismo. Essas alternativas, porém, não vão prosperar se partidos e governos de centro-esquerda entenderem que seu papel é seguir agendas de austeridade”.
Nas urnas, o fator Trump e a ascensão do conservadorismo no Brasil
O que a eleição de Donald Trump significa para a geopolítica mundial e quais os seus reflexos no Brasil?
Armando Boito Jr. – Durante os governos Lula 1 e Lula 2, a situação internacional era mais favorável para o Estado e para a economia brasileiros. O governo dispunha de uma maior margem de manobra no cenário político internacional e a economia brasileira, capitalista e dependente, pôde aprofundar, sem nenhum obstáculo significativo, suas relações com o capitalismo nacional de Estado chinês que estava caminhando para se converter no novo polo dinâmico da economia mundial. O imperialismo estadunidense não se antepôs de modo significativo à aproximação entre o Brasil e a China.
Hoje, a polarização dos Estados Unidos com a China se acirrou e isso repercute na periferia latino-americana. [Joe] Biden [atual presidente norte-americano] já havia verbalizado isso de modo, digamos, amigável: “A única coisa de que não gosto no governo Lula é da sua participação no Brics”. O futuro governo Trump irá agravar essa situação. Trump é tão belicoso quanto Biden, ou vice-versa, tanto faz. Porém, pelo que indicam os nomes escolhidos por Trump para compor a sua equipe e também a reação dessas figuras reprovando a decisão do governo Biden de promover a escalada da guerra na Ucrânia – ao autorizar o uso de mísseis estadunidenses para atacar o território russo –, podemos levantar a hipótese de que Trump tentará se aproximar da Rússia, neutralizá-la e introduzir assim uma cunha entre os governos Vladimir Putin [presidente russo] e Xi Jinping [presidente chinês] com o objetivo de abalar a aliança entre Moscou e Pequim e concentrar os esforços econômicos e bélicos do seu governo na luta contra a grande potência em ascensão que é a China.
Se essa mudança de política externa realmente ocorrer, o governo Lula 3 terá dificuldades crescentes para se manter no Brics ou, pelo menos, para participar ativamente desse grupo. O principal esforço do Brics hoje é avançar no processo, complexo e que promete ser demorado, de desdolarização da economia mundial. Trump já declarou que a perda do monopólio do dólar como moeda internacional seria o mesmo que perder a Terceira Guerra Mundial. Ele fará de tudo para impedir que esse processo avance.
A tentativa de Lula de retomar o neodesenvolvimentismo, isto é, a política de intervenção do Estado na economia para acelerar o crescimento econômico e reduzir a pobreza, irá se deparar com esse obstáculo, uma pressão no sentido de um alinhamento mais claro com os Estados Unidos. Tanto mais porque outra mudança que pode ocorrer na politica externa dos Estados Unidos sob o governo Trump será a de apertar o cerco contra os governos progressistas da América Latina.
Fernando Limongi – A eleição de Trump é preocupante. Trata-se de um resultado inesperado a respeito de um político que, quando ganhou pela primeira vez, podemos dizer, não sabíamos o que faria. Hoje sabemos muito bem o que Trump está propondo. Ele conta com apoio, está respondendo a algum anseio, por mais desconcertante que isso seja. Acho que há promessas não realizadas pela democracia, e parte desses problemas pode ser creditada à hegemonia neoliberal, que fechou a agenda política. Certas coisas você não pode fazer. Isso acelerou a desigualdade econômica e aumentou a frustração do eleitorado. Trump ganhou muitos votos entre os brancos sem educação superior, os grandes perdedores da globalização e do neoliberalismo. Então desconsiderar que aí há uma mensagem, isso eu acho um erro. Foi o Musk? Não. Foi o povo.
Há um problema da democracia contemporânea, um problema antigo: ter muito dinheiro em campanha. No caso dos Estados Unidos, isso passou a ser astronômico depois da desregulação aprovada pela Suprema Corte. Mas os dois partidos [Partido Democrata e Partido Republicano] têm dinheiro a rodo. Achar que Trump ganhou apenas porque contou com apoio do Elon Musk ou de quem quer que seja seria um erro de interpretação.
Flávia Biroli – Começo a responder pelo que está mais próximo de minhas pesquisas atuais: as implicações para o sistema internacional de direitos humanos, para os organismos e os acordos multilaterais e para as agendas igualitárias, de diversidade e ambientais, que vêm sendo pautadas por meio desses organismos há algumas décadas. Em seu primeiro mandato, Trump assumiu, nessa frente, as orientações que marcaram suas políticas mais amplamente: provocou ou intensificou conflitos e divisões, cortou verbas destinadas a políticas de defesa dos direitos humanos e atacou sistematicamente as políticas de promoção da igualdade de gênero e da ciência. Trump reduziu a capacidade e colocou em xeque a legitimidade de agências como a ONU Mulheres e a Organização Mundial de Saúde [OMS]. Essa orientação deve se repetir. Com o agravamento da crise climática e a recusa do entorno de Trump em reconhecer essa crise em um contexto emergencial, o cenário se agrava.
Isso se conecta com o impacto disso para a extrema direita global. Há hoje redes estabelecidas, que contam com políticos e empresários, entre eles alguns do mundo das chamadas big techs. Não se trata de ceder a teorias conspiratórias, mas de levar a sério suas articulações, os aprendizados que partilham e a provável disposição de operar em benefício de grupos políticos alinhados. Essas redes também podem, assim, reforçar agendas como a do ataque aos servidores públicos e aos controles democráticos, a do negacionismo científico e climático, a da normalização do racismo e da violência de gênero.
Esses temas devem ser pensados em conjunto com aqueles que têm recebido maior atenção da mídia: a posição de Trump sobre os conflitos armados, que pode significar um reforço às posições russas e a Vladimir Putin neste momento; seu alinhamento não apenas com Israel, mas com o primeiro-ministro Benjamin Netanyahu e sua coalizão de extrema direita; as políticas protecionistas e seus efeitos nas disputas com a China; e a imprevisibilidade de um homem vaidoso e pouco sensível àquilo que não corresponde a seu universo mental.
Rachel Meneguello – A campanha e as manifestações de Trump após a vitória, anunciando uma política protecionista e xenófoba, indicam que os Estados Unidos vão se alinhar estreitamente à onda de extrema direita que vem absorvendo muitos países, sobretudo na Europa. O fato de ter escolhido o senador Marco Rubio como secretário de Estado [cargo equivalente ao de ministro das Relações Exteriores], um personagem conhecido por suas manifestações extremistas, sugere a direção que sua política externa vai tomar. Isso coloca em destaque questões prementes como o seu papel com relação às ações de Israel sobre [a Faixa de] Gaza, o impacto de suas intenções protecionistas sobre a economia global e seu posicionamento na guerra Rússia-Ucrânia. Ainda não conhecemos, porém, suas ações concretas a respeito desses pontos. Vamos esperar.
Um dos resultados das eleições municipais deste ano foi o fortalecimento do centrão e da direita. As eleições também mostraram um acirramento da disputa entre direitas no Brasil (vide o caso Marçal/Bolsonaro). Quais são os rumos da configuração política no país? Quais as perspectivas para os setores progressistas?
Armando Boito Jr. – Se o cenário externo é difícil e pode se agravar, o cenário interno tampouco está ajudando o governo Lula 3. Explico. Considerando o que afirmei sobre o cenário internacional, poderia ocorrer ao leitor lembrar o fato de que Getúlio Vargas aproveitou a divisão entre os países centrais para fazer avançar a industrialização brasileira. Ele jogava com a ameaça de aliar-se à Alemanha para pressionar os Estados Unidos. Geralmente é isso o que ocorre quando os de cima estão divididos e brigam entre si: os de baixo podem avançar. Porém a situação que temos hoje não é a mesma da década de 1930. As diferenças são muitas, mas basta citar o fato de que o governo Lula 3 não dispõe de base no Congresso ou de unidade dentro do seu próprio governo para fazer esse jogo. Nas eleições deste ano, tivemos um fortalecimento da direita, uma performance muito boa da extrema direita e um resultado muito fraco para a esquerda e a centro-esquerda.
Vou indicar, contudo, alguns contrapontos que podem eventualmente permitir uma política mais ousada da parte do governo. Em primeiro lugar, devemos considerar os interesses do agronegócio e de boa parte da burguesia brasileira. O capitalismo brasileiro está muito integrado ao comércio com a China e dependente dele. Outros setores da burguesia brasileira aspiram a investimentos chineses no Brasil. Em segundo lugar, a extrema direita convive com divisões internas. Não se trata apenas de um conflito de egos ou de uma disputa entre camarilhas sem qualquer vínculo social. Tal cenário se deve ao fato de a extrema direita ter uma base social ampla e policlassista – burguesia financeira internacionalizada, médio capital, fazendeiros, classe média, população de baixa renda e com inserção econômica instável etc. As disputas entre Jair Bolsonaro, Ronaldo Caiado, Tarcísio Freitas, Pablo Marçal e outros indicam essa heterogeneidade. Bolsonaro, no Brasil, e Milei, na Argentina, iniciaram suas carreiras com um discurso anti-China, mas logo tiveram de se dobrar à realidade.
Haveria ainda a possibilidade de o governo Lula 3 apelar para a mobilização popular, embora saibamos que o lulismo, sequer nas situações em que esteve seriamente ameaçado – em 2005, na chamada Crise do Mensalão, e em 2015, na crise do impeachment –, ousou recorrer à mobilização popular. Enfim, há fatores que eventualmente poderiam permitir que o governo Lula 3 ganhasse força e pudesse recuperar a política econômica e social mais progressista implementada na década de 2000. A política do governo Lula 3 está aquém daquela praticada nos governos Lula 1 e Lula 2.
Considerando o que eu disse e alertando que em política não podemos ser fatalistas, diria que temos motivos para o pessimismo. Fazer hoje um jogo semelhante ao de Vargas na década de 1930 abriria um caminho repleto de perigos para um governo que, no plano interno, além de não dispor de uma base confiável no Congresso, encontra-se ameaçado internamente pelo neofascismo e pelo autoritarismo militar e pressionado pelo campo neoliberal democrático com o qual precisou se aliar. Acabamos de ver, com a revelação do plano golpista de dezembro de 2022 – que incluía o assassinato de Lula, Alckmin e Alexandre de Moraes –, que os fascistas e os militares não podem ser subestimados. Mas, como disse, sem fatalismos: combinemos, como defendia [Antonio] Gramsci, o pessimismo da razão com o otimismo da vontade.
Fernando Limongi – Eu diria ser preciso muita cautela na interpretação dos resultados das eleições municipais e muita cautela ao fazer a projeção do que esse processo significa nacionalmente. As eleições municipais têm outra lógica quando comparadas à eleição nacional. Exceto que as eleições municipais sempre são muito indicativas do que está por vir na próxima eleição. Mas raramente eu vi alguém acertar o resultado antes da eleição geral. Então não consigo ver nada de novidade. Ninguém perdeu radicalmente, ninguém ganhou radicalmente.
[Os setores progressistas] nunca vão muito bem [nas eleições municipais] quanto vão nas eleições nacionais. A única exceção de que me lembro é 2000, sinalizando que, em 2002, a esquerda ganharia. Mas também a gente só leu isso mais tarde. Depois de 2002, a gente falou: “Ah, a Marta [Suplicy] ganhou já em 2000, em São Paulo”. Da mesma forma, depois, ouviu-se: “Ah, o [João] Dória ganhou a eleição municipal em São Paulo, e isso significa que os outsiders estão com tudo”. Então sempre há uma possibilidade de ligar o que vem depois [com o que ocorreu antes]. Mas hoje eu teria dificuldade de fazer essa ligação.
Há quem diga que Bolsonaro não ganhou [a eleição municipal] e que houve divisões. Ele conseguiu, porém, eleger alguns candidatos que podem concorrer ao Senado em 2026. Em cada uma das regiões brasileiras, ele conta com um candidato forte para o Senado, seu principal objetivo: obter o controle do Senado para daí obter algum poder sobre o Supremo Tribunal Federal. Acho que esse é um resultado importante para ele.
Flávia Biroli – Vivemos hoje os desdobramentos de processos políticos da última década e, também, de transformações ocorridas nos sistemas de produção e de tecnologia e que vêm de mais longe. No primeiro caso, vale lembrar que a direita não cresceu como um raio em céu azul: houve uma campanha forte e que uniu setores políticos, do Judiciário, empresariais, do agro e militares contra o PT [Partido dos Trabalhadores], colocando em circulação narrativas com ataques às plataformas e aos atores da esquerda. Nesse ambiente de descrédito às alternativas progressistas, a extrema direita cresceu. Ainda que esse não seja um bloco homogêneo, o processo levou a um deslocamento de todo o sistema político rumo à direita.
No entanto é preciso levar em conta um segundo aspecto: com as mudanças ocorridas nos setores de produção e de tecnologia, certas formas de organização coletiva, como os sindicatos, perderam alcance (com uma mãozinha de políticos de direita que operaram para enfraquecê-los por meio de mudanças legislativas); os avanços tecnológicos modificaram as relações em diferentes aspectos e dimensões da vida. Há uma maior fragmentação e uma menor esperança coletiva. O “cada um por si” e o “cada um que cuide de si” são o caldo no qual políticos como Marçal prosperam. Temos hoje, porém, a convivência de diferentes narrativas. Para os setores progressistas, minha sugestão é que escutem e que atuem com mulheres negras e jovens de periferia, populações periféricas em busca de alternativas em diferentes partes do país. Não para se adaptar a uma suposta visão dos tempos, mas para compreender as necessidades e para elaborá-las em alternativas de justiça social que mobilizem a imaginação coletiva.
Cabe aos setores progressistas oferecer alternativas concretas à violência e ao retrocesso civilizacional da extrema direita, assim como aos efeitos da precarização da vida no neoliberalismo. Essas alternativas, porém, não vão prosperar se partidos e governos de centro-esquerda entenderem ser seu papel adotar agendas de austeridade que, por meio de juros exorbitantes e baixo investimento social, direcionam os recursos existentes para o bolso de quem já tem muito.
Rachel Meneguello – É verdade. Tivemos uma acentuação da presença de partidos de centro e de direita nas prefeituras e câmaras. Os cinco partidos que mais elegeram prefeitos foram o PSD [Partido Social Democrático], o MDB [Movimento Democrático Brasileiro], o PP [Progressistas], o União Brasil e o PL, que conquistaram 3.614 prefeituras, governando portanto 65% dos municípios do país e 80% dos eleitores brasileiros em nível local. A principal força política de esquerda, o PT, ficou com apenas 252 prefeituras, governando 4,9% dos eleitores do país. É preciso lembrar que o PT e as outras organizações de centro-esquerda e esquerda nunca tiveram uma proeminência eleitoral local. Porém, nessa eleição, o que vimos foi a superação de algumas constantes do cenário partidário-eleitoral: o sucesso eleitoral do PSD, superando a histórica hegemonia do PMDB/MDB nas prefeituras (lembrando que o MDB ainda assim obteve o maior número de vereadores dentre os partidos); a vitória dos partidos de centro e de direita em 24 capitais – a esquerda venceu apenas em Recife (PSB) [Partido Socialista Brasileiro] e em Fortaleza (PT) –, diluindo com força significativa a afirmação de que os eleitorados dos grandes centros, notadamente as capitais, tendem a se expressar politicamente no campo progressista, e a quebra do raciocínio lógico de que a presença de um partido no Executivo federal tende a influenciar positivamente o seu desempenho eleitoral em nível local.
Não foi assim, dessa vez, com o PT. De fato, em 2012, última eleição local com o PT na Presidência do país, o partido chegou a obter 630 prefeituras. Agora, em 2024, porém, o resultado obtido traduz o impacto de seis anos de uma configuração formada nos moldes de uma política à direita com nítidos traços populistas. Essa é a configuração que tem apresentado dificuldades para a governabilidade do Executivo frente ao Congresso. Sobre as disputas internas da direita, isso não foge ao seu comportamento, já conhecido. Nos anos 1990, o Brasil possuía a direita partidária mais fragmentada da América Latina. As retóricas, os estilos e as elites representantes mudaram, mas a pluralidade de interesses é a mesma.
Da governança global ao golpe malogrado
Diante desse cenário político mundial e nacional, o que se pode esperar dos esforços em torno de pautas centrais na atualidade, como as mudanças climáticas e a migração? Como devem ficar os esforços de governança global em torno desses assuntos, tendo em vista que uma das principais potências mundiais será comandada por um governante anti-imigrantes e avesso às questões ambientais?
Armando Boito Jr. – É claro que a possibilidade de avançar nessas áreas ficará muito mais reduzida. Como sabemos, Trump é um negacionista climático e tem uma posição anti-imigração. Sobre a chamada governança global, há mal entendidos nessa matéria. A governança global é impossível enquanto existir o capitalismo e o seu corolário, que é o imperialismo. Os governos e as forças progressistas podem e devem levar as questões supranacionais, como a emergência climática e a nova onda migratória, para as instituições e os fóruns multilaterais, mas sem ilusões. Veja o resultado decepcionante da recente COP29 [29a Conferência das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas]. O que se pode esperar nessas instituições e nesses fóruns é conseguir propagandear os grandes problemas e também fazer um pouco de pressão sobre os Estados mais poderosos e os governos reacionários. No entanto o sistema imperialista ocidental, comandado pelos Estados Unidos, não se submete a nada que lembre uma governança global.
Os governos de países da periferia e dependentes, principalmente os progressistas, bem como os movimentos populares da periferia e do centro, devem lutar contra o sistema imperialista. Essa é a tarefa mais urgente. No caso do Brasil e de outros, o caminho atual mais eficiente para abalar a dominação imperialista é fortalecer o Brics e fazer avançar as medidas de desdolarização da economia mundial.
Fernando Limongi – Isso representa uma grande derrota para essas agendas porque Trump não abraça essas questões. Porém o mais interessante, e na verdade surreal, quanto à vitória de Trump é que o grande questionador do neoliberalismo veio da direita, não? Então se trata do primeiro grande eleito que vai realmente chacoalhar o consenso neoliberal e mudar as políticas, aparentemente. A não ser que Trump não cumpra o que prometeu.
E em relação a essas pautas, haverá um enfraquecimento e uma maior dificuldade. Vamos ver também como a Europa reage a isso, e se a direita avança também na Europa ou não. Porque nós tivemos na França um resultado inesperado, na Espanha, um resultado com uma certa recuperação da centro-esquerda. A Alemanha vai realizar uma eleição agora, no próximo ano. Então precisamos ver se a Europa vai seguir a linha Trump ou se vai oferecer uma reação a Trump. Acho isso fundamental para a gente saber como as coisas vão.
Flávia Biroli – Como respondi na primeira questão, o segundo mandato de Trump deve adotar a mesma direção do primeiro, minando os organismos multilaterais e os esforços de governança global para responder a conflitos e à crise ambiental e climática. Trump e seu governo em formação já são a face mais nítida do que Naomi Klein definiu como o “capitalismo de tragédia”.
Rachel Meneguello – O cenário mundial coloca questões graves para a governança global, e algumas delas foram tratadas na reunião do G20 [grupo que reúne as 19 maiores economias do mundo e representantes da União Europeia e da União Africana] neste ano, embora de maneira desigual. O Brasil conseguiu pautar a questão da fome mundial como uma prioridade e, de alguma forma, extrapolou um protocolo simples de intenções, definindo desdobramentos concretos. No entanto as consequências que a globalização vem impondo há décadas aos países, como a crise econômica com altas taxas de desemprego, grandes contingentes de excluídos e a concorrência pelos recursos de bem-estar, associadas às ondas de migração na Europa e na América e à incorporação de países pobres à União Europeia, levaram a uma intensificação dos discursos nacionalistas, expressos em fórmulas populistas e xenofóbicas.
O retorno de Trump nos Estados Unidos e as vitórias da direita e da extrema direita nas eleições recentes da Europa apontam para um reforço das fronteiras nacionais não apenas econômicas, mas também culturais, étnicas e religiosas. Acertos entre líderes mundiais dificilmente dão conta disso. A gravidade da questão ambiental talvez suplante alguns constrangimentos quanto a esse assunto, mas, em alguma medida, a pauta ficará refém das imposições feitas pelas questões nacionais.
O que o episódio do ataque ao STF, realizado por um membro do PL no dia 13/11, e o plano dos militares para assassinar Lula, Alckmin e Alexandre de Moraes revelam sobre a situação política no país?
Fernando Limongi – A resposta é um tanto óbvia: revelam que as coisas não vão bem, que por mais isolada que tenha sido a ação [o ataque ao STF], ela se inscreve em uma série de outros atos de violência e de atentados. Ao contrário do que aconteceu em 2018, os derrotados em 2022 não aceitaram pacificamente o resultado das urnas. A radicalização da direita é algo evidente e preocupante.
Flávia Biroli – A extrema direita se radicaliza. Isso não se limita ao Brasil ou a episódios isolados. Em conjunto, esses eventos mostram a relação entre a radicalização de setores de elite – como os militares – e da base – como no caso do candidato a vereador pelo PL que morreu, em uma explosão, no ataque que planejou. No andar de cima, combinam-se ambições de controle não democrático do Estado, em que generais da reserva se envolvem no que tem sido noticiado como planos de golpe e assassinato. Nos andares de baixo, as caixas de ressonância do mundo digital têm lógicas (e capatazes) que incentivam a separação e a desumanização de quem pensa diferente, minando a possibilidade de resoluções políticas dialogadas para os conflitos. De fundo, o ressentimento de amplos setores da população com um regime democrático que responde mal às suas necessidades.
Rachel Meneguello – Esses episódios se destacam por dois motivos. O primeiro é a persistência das ações golpistas terroristas depois de quase dois anos de uma democracia eleita com poderes democráticos constituídos e funcionando. Não é claro se podemos denominar essa sequência de ações de uma militância extremista como uma agenda regular de atos violentos, mas é fato que as ações de defesa e manutenção do regime democrático, conduzidas pelo Poder Judiciário nesse período, não têm sido capazes de conter a ousadia dessas forças políticas não democráticas, como mostra a inusitada proposta de anistia aos golpistas e a de controle sobre o Supremo Tribunal Federal apresentadas ao Legislativo.
O segundo ponto de destaque é a concretude das provas coletadas pela Polícia Federal sobre a agenda golpista e as suas formas de organização, com a participação de militares de alta patente e de quadros treinados em planos criminosos de tomada de poder, indicando com clareza inegável, em vista dos procedimentos, materiais e detalhes, a presença de uma extrema direita organizada. Para mim, ao saber do nome do plano de assassinato – Punhal Verde Amarelo –, houve uma associação imediata com o título do relatório de 1943 feito por um delegado do Departamento de Ordem Política e Social [Dops] de Santa Catarina – “O Punhal Nazista sobre o Coração do Brasil” –, em que se descrevem a estrutura da máquina nazista e suas táticas de infiltração no sul do país. Guardadas todas as devidas proporções, o fato é que a situação política do Brasil mostra que a democracia não pode mais prescindir da atenção às, da prevenção contra as e do combate às forças de uma extrema direita golpista presente em partidos, parlamentares, corporações e grupos sociais.